O Sal da Língua agradece as mais de 10000 visitas e inaugura hoje a prosa de Eugénio neste espaço de todos.
Almocei no Cerco do Porto e como o dia estava bonito peguei no Miguel e fomos até à Foz. O miúdo nunca andara de eléctrico, além disso eu queria mostrar-lhe a casa onde nascera Raul Brandão e a Praia dos Ingleses, antes que as ondas a levassem. O Gil deixou-nos no Infante e viria esperar-nos lá para o fim da tarde. Como se no outono o mar já não merecesse o olhar de ninguém, o eléctrico ia quase vazio. Apontei ao Miguel o casario cigano de Miragaia, os estaleiros sonolentos de Massarelos, a Cantareira reduzida a um estendal de roupa ao sol, as gaivotas do Cabedelo, tão próximas e confiantes que terminaram por entrar num poema meu.
Descemos no Passeio Alegre; ali estava ainda a loja do Augusto onde se vendia, de fabrico caseiro, a mais perfumada compota de framboesas; aqui, a rua onde crescera o Raul Brandão, a casa onde nasceu, na qual ninguém poderia já escutar o murmúrio da bica de água ou ver o pessegueiro bravo florir encostado ao muro do quintal; por estes degraus sobe-se ao adro da igreja matriz, donde já não se avista o mundo porque o mundo cresceu desmesuradamente, mas onde podem contemplar-se uns plátanos formosíssimos, agora carregados de oiro velho. Por ruas estreitas e vielas, que se encontram ainda “a cem léguas do Porto e da vida” chega-se por fim, mesmo indo devagarinho, à Confeitaria da Foz, com o Miguel a aguentar-se bem nas pernas, apesar dos seus escassos seis anos.
A confeitaria onde eu e o Pascoaes tomávamos o café, não mudara só de nome, mudara também de aspecto, embora conservasse ao fundo algumas mesas junto às vidraças, por onde entrava o mar. Depois de nos sentarmos, comecei a falar do velho poeta ao Miguel. Não me parece que ele esteja muito atento.
– Ó papi, qual é o maior, o Pascoaes ou o Fernando Pessoa?
– Isso é uma pergunta que tem pouco sentido, Miguel. Um poeta, quando é grande, é sempre o maior para quem faz sua a poesia dele.
– Mas qual achas que é o maior?
– Bem, eu gosto mais do Pessoa. Não vale a pena dizer-te porquê, não saberia dizê-lo com palavras que tu entendesses.
O empregado serviu o café, o Sumol. Observo o pequeno enchendo escrupulosamente o copo.
– Ó papi, tu gostavas que eu fosse como o Fernando Pessoa?
– Não, filho; o que eu gostava era que fosses feliz.
– Mas é que se eu fosse como o Fernando Pessoa não era feliz.
– Ah, sobre isso não tenho dúvidas; ele também não o era, nem creio que estivesse preocupado com isso.
Calou-se; mas a pausa foi breve.
– Tu sabes como é que eu era feliz?
– Não, não faço ideia.
Fez outra pausa, mais breve.
– Era feliz, se fosse como o Gomes.
Não respondi. Foi ele que insistiu:
– Sabes quem é o Gomes?
Fingi uma ignorância maior do que na realidade tinha:
– Deve ser…
– Tu não sabes nada, papi! É o Bota de Oiro! Sabes o que é o Bota de Oiro?
Não me deu tempo de dizer sim ou não:
– É o que mete mais golos.
– Está bem Miguel, vamos ver o mar; deixa lá o Gomes e o Pessoa. O que importa é que venhas a ser tu próprio, não há outra maneira de ser feliz.
Peguei-lhe na mãozita, que se abandonou, confiante. Descemos à praia, soltou-se, correu pela areia. O mar era uma porção de brilhos, habitado, como estava, somente pela luz.