Ó manhã,
manhã,
manhã de setembro,
invade-me os olhos,
inunda-me a boca,
entra pelos poros
do corpo, da alma,
até ser em ti,
sem peso e memória,
um acorde só
do vento e da água,
uma vibração
sem sombra nem mágoa.
Ó manhã,
manhã,
manhã de setembro,
invade-me os olhos,
inunda-me a boca,
entra pelos poros
do corpo, da alma,
até ser em ti,
sem peso e memória,
um acorde só
do vento e da água,
uma vibração
sem sombra nem mágoa.
Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
– chegaste,
nem eu sei de que horizontes.
Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
– ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.
Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
– ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.
Neste “O lugar dos amigos” é dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio – os seus colegas e amigos.
Carta a Eugénio de Andrade, por Almeida Faria
25.06.2005
Caro Eugénio,
Lembra-se quando nos conhecemos? Foi em Lisboa nos anos sessenta, eu acabara de publicar “A Paixão”, encontrámo-nos no Monte Carlo e você queria por força atravessar a recém-inaugurada Ponte Salazar. Apesar de ser noite, fomos até à outra banda conversando e voltámos, sempre a conversar.
Depois quase não nos vimos, embora eu fosse lendo os seus livros. Durante um curto período recebi notícias suas por um amigo comum que fez os nossos retratos imaginários e que, ao contrário de nós, não teve a sorte de envelhecer.
Quando recentemente nos reencontrámos foi na sua bem arrumada biblioteca, numa tarde em que a janela alta espalhava a luz na Foz por toda a sala. Assim que entrei, você disse-me “Afinal também você envelheceu”.
São assim os reencontros muito espaçados: trazemos uma imagem do outro na cabeça e de repente vemo-nos confrontados com uma cara onde só já se adivinham os traços que nos foram familiares.
Como se, num instante, a pessoa à nossa frente tivesse atravessado anos e anos de boas e más experiências, alegrias e desânimos, euforias, obsessões e sofrimento. Como se o tempo – que nos condena e nos liberta – tivesse acelerado indevidamente.
Clarividente era o Jorge de Sena ao escrever, ainda jovem, que “Nós não vemos viver o nosso rosto”.
Neste Setembro envelhecido, envia-lhe um grande abraço o seu cada vez menos jovem leitor antigo,
Almeida Faria
(In: “Dez Cartas e Um Bilhete Postal para Eugénio de Andrade”, Coordenação de José da Cruz Santos, Edições Asa)
Amarelo, laranja, limão,
depois o carmim: tudo arde
nas areias
entre as palmeiras e o mar – era verão.
Mas no lugar do teu nome
a terra tem a cor do verde
pensativo, que só a noite
pastoreia leve.
Brinca a manhã feliz e descuidada,
como só a manhã pode brincar,
nas curvas longas desta estrada
onde os ciganos passam a cantar.
Abril anda à solta nos pinhais
coroado de rosas e de cio,
e num salto brusco, sem deixar sinais,
rasga o céu azul num assobio.
Surge uma criança de olhos vegetais,
carregados de espanto e de alegria,
e atira pedras às curvas mais distantes
– onde a voz dos ciganos se perdia.
As cigarras,
a brusca rouquidão da cal,
a surda rebentação dos cardos,
tudo o que faz o verão subir a prumo
chegou ao fim.
O frio, a sua teia branca,
lembra-te, não tardará.