Também tu,
também tu suspiras
por águas que lavem
o pranto, as feridas,
e se possível o mundo.
Suspiras, e ardes,
e contigo arde o ar.
Felizes os anjos:
em vez de suspiros
ouvem-te cantar.
26-1-87
In: Homenagens e outros Epitáfios
Também tu,
também tu suspiras
por águas que lavem
o pranto, as feridas,
e se possível o mundo.
Suspiras, e ardes,
e contigo arde o ar.
Felizes os anjos:
em vez de suspiros
ouvem-te cantar.
26-1-87
In: Homenagens e outros Epitáfios
Num dia como o de hoje, em 1923, na Póvoa de Atalaia, Fundão, nascia com o nome José Fontaínhas o nosso querido Eugénio. Em jeito de homenagem, aqui fica a composiçºao “Coração Habitado”, de Jorge Peixinho, inspirada no poema de Eugénio de Andrade. https://www.youtube.com/watch?v=tUnckPwkvM8
Coração Habitado
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.
Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.
Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
Eugénio de Andrade, in “Até Amanhã”
“Eugénio de Andrade, o Poeta”, Biblioteca Municipal Eugénio de Andrade – Fundão, pintura Isabel Nunes
O Sal da Língua comemora o nascimento do seu poeta Eugénio de Andrade que, num dia como o de hoje, no ano de 1923, nascia em Póvoa da Atalaia, concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco, para nos alumiar com a sua poesia e prosa!
Em jeito de comemoração, a aldeia natal do poeta vai acolher um espaço interpretativo dedicado à sua vida e obra. Este foi o anúncio feito pela Câmara Municipal de Póvoa da Atalaia que, além do espaço que requalificará em honra do poeta, prevê igualmente a criação de uma rota pedestre que, ao longo de 4 Km, dará a conhecer a presença desta aldeia na obra de Eugénio de Andrade!
Mais informações aqui: http://www.noticiasaominuto.com/cultura/522042/aldeia-de-eugenio-de-andrade-acolhe-espaco-dedicado-ao-poeta
Parabéns ao nosso poeta e ao município de Póvoa de Atalaia por acarinhar e celebrar os seus!
1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.
2.
Só o desejo é matinal.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.
4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.
Beber-te a sede e partir
– eu, que sou de tão longe.
Da chama à espada
o caminho é solitário.
7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
In: Ostinato Rigore (1964)
Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
In: Sal da Língua (1995)
É de Shumann, a música.
Dói, acalma, é transparência
última da rosa, a de Dante
no Paraíso;
não há outra morada,
outro cristal, outra ave;
há somente esse rio, esse gume
que fere, apazigua,
o corpo, a alma – quem sabe?
In: Rente ao Dizer (1992)
O Sal da Língua comemora a liberdade e o 25 de Abril, sempre. Pela liberdade de mudar, de decidir, de escrever, de viver! Neste dia, a poesia de alguns poetas que tão bem traduziram o espírito da mudança que se impunha rumo às liberdades!
A Rapariga do País de Abril
Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.
E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.
Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.
E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.
Por ti cheguei ao longe aqui tão perto
e vi um chão puro: algarves de ternura.
Qaundo vieste tudo ficou certo
e achei achando-te o País de Abril.
Manuel Alegre
30 Anos de Poesia
Publicações Dom Quixote
Com que então libertos, hein?
Com que então libertos, hein? Falemos de política,
discutamos de política, escrevamos de política,
vivamos quotidianamente o regressar da política à posse de cada um,
essa coisa de cada um que era tratada como propriedade do paizinho.
Tenhamos sempre presente que, em política, os paizinhos
tendem sempre a durar quase cinquenta anos pelo menos.
E aprendamos que, em política, a arte maior é a de exigir a lua
não para tê-la ou ficar numa fúria por não tê-la,
mas como ponto de partida para ganhar-se, do compromisso,
um boa lâmpada de sala, que ilumine a todos.
Com o país dividido quase meio século entre os donos da verdade e do poder,
para um lado, os réprobos para o outro só porque não aceitavam que
não houvesse liberdade, e o povo todo no meio abandonado à sua solidão
silenciosa, sem poder falar nem poder ouvir mais que discursos de salamaleque,
há que aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política.
Não apenas pelo prazer tão grande de poder falar livremente
e poder ouvir em liberdade o que os outros nos dizem,
mas para o trabalho mais duro e mais difícil de — parece incrível —
refazer Portugal sem que se dissipe ou se perca uma parcela só
da energia represa há tanto tempo. Porque é belo e é magnífico
o entusiasmo e é sinal esplêndido de estar viva uma nação inteira.
Mas a vida não é só correria e gritos de entusiasmo, é também
o desafio terrível do ter-se de repente nas mãos
os destinos de uma pátria e de um povo, suspensos sobre o abismo
em que se afundam os povos e as nações que deixaram fugir
a hora miraculosa que uma revolução lhes marcou. Há que caminhar
com cuidado, como quem leva ao colo uma criança:
uma pátria que renasce é como uma criança dormindo,
para quem preparamos tudo, sonhamos tudo, fazemos tudo,
até que ela possa em segurança ensaiar os primeiros passos.
De todo o coração, gritemos o nosso júbilo, aclamemos gratos
os que o fizeram possível. Mas, com toda a inteligência
que se deve exigir do amadurecimento doloroso desta liberdade
tão longamente esperada e desejada, trabalhemos cautelosamente,
politicamente, para conduzir a porto de salvamento esta pátria
por entre a floresta de armas e de interesses medonhos
que, de todos os cantos do mundo, nos espreitam e a ela.
Jorge de Sena
SB, 2/5/1974
25 de Abril
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen
‘O Nome das Coisas’
Olha-me rapidamente num convite
que não aceito, a promessa de prazer
cai então em olhos menos fatigados,
mas por instantes pude surpreender
um campo matinal de trevos orvalhados.
In: Escrita da Terra (1974)
Que voz lunar insinua
o que não pode ter voz?
Que rosto entorna na noite
todo o azul da manhã?
Que beijo de oiro procura
uns lábios de brisa e água?
Que branca mão devagar
quebra os ramos do silêncio?
In: Mar de Setembro (1961)