Também tu,
também tu suspiras
por águas que lavem
o pranto, as feridas,
e se possível o mundo.
Suspiras, e ardes,
e contigo arde o ar.
Felizes os anjos:
em vez de suspiros
ouvem-te cantar.
26-1-87
In: Homenagens e outros Epitáfios
Também tu,
também tu suspiras
por águas que lavem
o pranto, as feridas,
e se possível o mundo.
Suspiras, e ardes,
e contigo arde o ar.
Felizes os anjos:
em vez de suspiros
ouvem-te cantar.
26-1-87
In: Homenagens e outros Epitáfios
1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.
2.
Só o desejo é matinal.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.
4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.
Beber-te a sede e partir
– eu, que sou de tão longe.
Da chama à espada
o caminho é solitário.
7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
In: Ostinato Rigore (1964)
Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
In: Sal da Língua (1995)
É de Shumann, a música.
Dói, acalma, é transparência
última da rosa, a de Dante
no Paraíso;
não há outra morada,
outro cristal, outra ave;
há somente esse rio, esse gume
que fere, apazigua,
o corpo, a alma – quem sabe?
In: Rente ao Dizer (1992)
Olha-me rapidamente num convite
que não aceito, a promessa de prazer
cai então em olhos menos fatigados,
mas por instantes pude surpreender
um campo matinal de trevos orvalhados.
In: Escrita da Terra (1974)
Que voz lunar insinua
o que não pode ter voz?
Que rosto entorna na noite
todo o azul da manhã?
Que beijo de oiro procura
uns lábios de brisa e água?
Que branca mão devagar
quebra os ramos do silêncio?
In: Mar de Setembro (1961)
Para sempre um luar de naufrágio
anunciará a aurora fria
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.
Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo,
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silêncio
atravessada na garganta.
Não sei se te procuro ou se me esqueço
de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar de uma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidão bebida pelos bares,
nas mãos levemente adolescentes
pousadas na indolência dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra em sombra, nas ruas da cidade?
Ninguém te conheceu,
ninguém viu romper a luz na tua cama,
ninguém sabe, nnguém,
que o teu corpo, continente selvagem,
se desvelava por uma pedra branca
atirada contra o nevoeiro.
Por isso escrevo esta elegia
como quem oferece a luz dos olhos;
por isso canto o teu rosto afogado
como quem canta um funeral de espigas.
In: As Palavras Interditas (1951)
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.
In: As Mãos e os Frutos (1948)
Que mar a pique
ou luz,
ausente e quente,
na boca tão intensa
que fere a tarde?
In: Coração do dia (1958)
Pedra a pedra
a casa vai regressar.
Já nos ombros sinto o ardor
da sua navegação.
Vai regressar
o silêncio com as harpas.
As harpas com as abelhas.
No verão morre-se
tão devagar à sombra dos ulmeiros!
Direi então:
Um amigo
é o lugar da terra
onde as maçãs brancas são mais doces.
Ou talvez diga:
O outono amadurece nos espelhos.
Já nos meus ombros sinto
A sua respiração.
Não há regresso: tudo é labirinto.
In: Obscuro Domínio (1972)