Ele era o que sabia sem ter ar de saber. Ao contrário de Almada, Pomar ou Lanhas, Resende deixa que o pincel ou o lápis pensem por ele. Avesso a especulações, a pintura atravessa-lhe o corpo todo: era um parente natural de Goya, que Resende, quando jovem, copiará aplicadamente no Prado, numa aprendizagem do ofício, paciente e humilde. A tal mestre será fiel toda a vida; a prová-lo aí está essa cópia, que é dos raros óleos emoldurados nas paredes de sua casa – esta casa que o Carlos Loureiro lhe fez, como fato por medida, ali no Gramido, em cima do Douro, tão discreta e oculta pelo arvoredo que não se dá por ela senão quando já nos encontramos no seu interior, e cujo estreito corredor conduz directamente ao atelier, recebendo a luz das ramagens altas do sol através da grande vidraça, que é toda a parede do fundo. Isolado do resto da casa; há mesmo ali uma escada estreita que leva a uma pequena câmara com divã e mesa de trabalho. É neste isolamento, rodeado de telas vazias encostadas à parede, e uma mais pequena no cavalete com sinais doutra aventura ter começado, e livros, discos, tintas, revistas, e os mais inesperados objectos – máscaras africanas, instrumentos musicais brasileiros, amostras de terra trazidas das viagens – que o podeis encontrar todos os dias, mesmo aos sábados, e domingos, e dias santos de guarda, a trabalhar desde que o sol rompe até quase se extinguir na vidraça. Falta-me dizer que nas paredes, além de cartazes de exposições suas, há alguns retratos: um de Picasso e mais de meia dúzia do Daniel, o seu neto, como notas musicais em crescendo. Vestindo calças de bombazina e camisola, ambas desajustadas, é uma presença discreta, de uma serenidade que os cabelos brancos acentuam, com alguma juventude ainda a refugiar-se no sorriso um nadinha irónico, um olhar que não foge nunca ao espírito inquisitivo doutro olhar. Está agora sentado numa cadeira de verga, o cachimbo acabado de acender, os olhos fixos no trabalho do cavalete; de repente levanta-se, larga o cachimbo, pega no pincel, esquece-se do tempo, sem saber de ciência certa onde é que a sua energia e o sortilégio das cores o poderão levar. Volta a sentar-se, dá uma olhadela ao quadro e, mais tranquilo, escolhe um disco; durante alguns compassos abandona-se à Viagem de Inverno. No atelier a luz é fina e doirada, como se fora Rembrandt a fazê-la. A pensar num e noutro, em Rembrandt e em Shubert, porque a ambos amava, Resende pega no bloco, na mina de carvão, e abandona-se ao que o instante tem de doçura leve e transparente, no fim de tarde daquele verão. Uma linha começa a dançar na página branca; sem qualquer hesitação, a mão segue-lhe o rasto, é agora uma figura aérea que baila, vai, vem, corre, arrasta com ela uma poeira de oiro fremente, porque, como já sabemos, era verão. Toda a energia humana se concentra naquela perseguição do tempo, ou antes, numa íntima fracção de tempo, milimetricamente calibrado. Entre aquelas paredes tudo foi perdendo sentido, a ponto de o pintor já não saber se está a sonhar ou, como no conto Borges, a ser sonhado. Porque é da irrealidade do real e da realidade da imaginação que estas linhas, traçadas por mão conhecedora, nos falam. E continuarão a falar.
Chegado aos setenta, qualquer artista já acumulou sofrimento que baste para entrar no paraíso. E mais do que isso: já teve muita ocasião de transformar o sofrimento em alegria – porque é alegria o que toda a arte nos comunica, mesmo das funduras da tristeza. “Eu quero fazer milagres”, dizia Leonardo da Vinci; e nunca fez outra coisa. Resende chegou a essa idade em que a sabedoria de confunde com a indiferença pelas coisas do mundo, atento apenas ao seu trabalho, e a palavra tem aqui uma carga explosiva: significa paixão. Paixão em exprimir essa coisa tão simples e tão exaltante: estar vivo sobre a terra, responder à luz com a luz, à cor com a cor, ao olhar com o olhar. Dizer numa simples linha o que pensam os seus olhos, é a tarefa do pintor. Louvemos, em tempo de catástrofe e de cólera, o que nos resta de limpo sobre a terra – parecem dizer-nos estes traços, estas cores – louvemos a terra e as suas criaturas. Cada artista é assim uma espécie de S. Francisco cantando, por sua conta e risco, um hino à criação. “Cantar é ser”, diz o poeta dos Sonetos a Orfeu, e ser é “expor-se, na nudez mais completa, só e sem amparo”, diz por sua vez o nosso pintor. Só e sem amparo, é verdade. E contudo, é dessa solidão que nasce esta maravilha que temos na mão: numa folha de escassos centímetros quadrados surgem dois ou três acordes cromáticos, duas ou três casas baixas, como as da minha infância, uma delas cor de rosa, a outra cor de trigo, e uma árvore de um verde mediterrâneo; à sua roda respira-se melhor, há no ar uma música subtil, ascencional, e tudo é leve, tudo é bom.
Aos setenta anos um homem começa a arrumar a casa, a limpar as gavetas, a rasgar apontamentos, a queimar fotografias que beijava em horas juvenis. Surpreendi o meu amigo numa dessas tarefas; confesso que não é divertido. De um massacre mais recente escaparam cerca de mil desenhos. Uma parte significativa deles encontra-se aqui. São muitos anos dedicados ao ofício, a mão cega procurando iluminar as funduras da alma, ou esforçando-se, com o tempo, a esquecer o que foi aprendendo.
Já se sabe como o desenho é fundamental na obra de qualquer pintor. Klee considerava-o a pedra de toque de toda a expressão plástica, e não ignoramos a importância que Leonardo lhe atribuía. Alguns destes desenhos são coisas acabadas, sem relação nenhuma com os quadros; outros serão estudos para futuras pinturas; outros ainda são improvisações, uma maneira de a mão tactear no escuro, ou simplesmente repousar. Desenhos à pena, a lápis, a carvão, aguarelas, pastel, técnica mista, uma ou outra aguarela. Uns feitos d’après nature, outros de imaginação. A figura humana, alguns animais, uma ou outra planta, mais raramente uma paisagem – talvez neste inventário se encontrem as suas obsessões. Mas a figura humana, muito mais no seu aspecto grotesco e infeliz do que no seu esplendor, é nos desenhos, e em toda a sua obra, predominante. Curiosamente, Resende parece contrariar a ideia de Adorno, segundo a qual às obras tardias, estaria reservado o papel de representarem as catástrofes. Ele pensa-o a propósito de Beethoven, mas poderia ter invocado a pintura de Goya, de Klee, de Miró (e acrescentando outro exemplo musical, os últimos quatro Quartetos para Cordas, de Chostakovitch, que Adorno não deve ter conhecido). Em Resende passa-se o contrário: quanto mais vai envelhecendo mais vital e solar se torna a sua arte. E ao mesmo tempo mais pueril. É então que a sua pintura deixa de falar e começa a cantar. É desse modo que se defende do peso do mundo.
In: À Sombra da Memória (1993)