Pergunto se não morre esta secreta
música de tanto olhar a água,
pergunto se não arde
de alegria ou mágoa
este florir do ser na noite aberta.
In: Ostinato Rigore (1964)
Pergunto se não morre esta secreta
música de tanto olhar a água,
pergunto se não arde
de alegria ou mágoa
este florir do ser na noite aberta.
In: Ostinato Rigore (1964)
Quando o ser da luz for
o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à água)
então estarei em casa.
In: Sal da Língua (1995)
Vê como a nudez cresce.
Seria fácil pousar agora
no lume
ou no gume do silêncio
se houvesse vento:
mas quem se lembra do branco
aroma da alegria?
Reconheço no vagaroso
andar da chuva o corpo do amor:
vem ferido: nas suas mãos
como dormir?
Como enxotar a morte: esse animal
sonâmbulo dos pátios da memória?
Bago a bago podes colher
a noite: está madura:
podes levar à boca
a preguiçosa espuma
das palavras.
E crescer para a água.
In: Véspera da Água (1973)
Eu sentia os seus olhos beber os meus;
longamente bebiam, bebiam;
bebiam
até não me restar nas órbitas nenhuma
luz, nenhuma água,
nem sequer o sinal de neles ter chovido
naquele inverno.
In: Rente ao Dizer (1992)
Respiro a terra nas palavras,
no dorso das palavras
respiro
a pedra fresca da cal;
respiro um veio de água
que se perde
entre as espáduas
ou as nádegas;
respiro um sol recente
e raso
nas palavras,
com lentidão de animal.
Pergunto se não corre esta secreta
música de tanto olhar a água,
pergunto se não arde
de alegria ou mágoa
este florir de ser na noite aberta.
Fazer do olhar o gume certo, atravessar a água corrompida, no avesso da sombra soletrar o rosto ardido da sede antiga.
Julguei que não voltaria a falar desse verão onde o sol se escondia entre a nudez dos rapazes e a água feliz. Imagens que já não doem – risos, corridas, a brancura dos dentes, ou a matutina estrela ardendo no centro da nossa carne – chegaram com a neve, tão rara nestas paragens, e como pousa a poeira, sentaram-se ao lume vagarosas. Aí estiveram, escutando o que traz o vento. Até anoitecer.
Dos olhos me cais, redonda formosura. Quase fruto ou lua, cais desamparada. Regressas à água mais pura do dia, obscuro alimento de altas açucenas. Breve arquitectura da melancolia. Lágrima, apenas.
Sempre a água me cantou nas telhas. Habito onde as suas bicas, as suas bocas jorram. As palavras que no cântaro a noite recolhe e bebe com agrado sabem a terra por serem minhas. Não sou daqui e não vos devo nada, ninguém poderá negar a evidência de ser chama ou água, fluir em lugar de ser pedra. Perdoai-me a transparência.