Arquivo de Dezembro, 2007

28
Dez
07

Primeiramente

Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.

E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo.

Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca – e sempre a tua boca – comece de novo a nascer na minha boca.

Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.

27
Dez
07

Algumas imagens do Inverno

Chega mais cedo;

conheço-lhe os passos:

já muita vez aqueceu as mãos

ao lume das minhas.

Vai demorar-se;

sacudir a lama, remendar

os sapatos, tirar o sal

que se juntou em redor dos lábios.

Entre o silêncio e o falar

não há senão

espaço para anoitecer.

Tão pesadas, as folhas do ar.

26
Dez
07

Quase nada

Passo e amo e ardo.

Água? Brisa? Luz?

Não sei. E tenho pressa:

levo comigo uma criança

que nunca viu o mar.

24
Dez
07

Litania

O teu rosto inclinado pelo vento;

a feroz brancura dos teus dentes;

as mãos, de certo modo, irresponsáveis,

e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,

colunas em repouso se anoitece;

o peito raso, claro, feito de água;

a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser

a cor de um fruto, o peso de uma flor;

as palavras mordendo a solidão,

atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.

23
Dez
07

Improviso

Uma rosa depois da neve.

Não sei que fazer

de uma rosa no inverno.

Se não for para arder,

ser rosa no Inverno de que serve?

22
Dez
07

As crianças

Elas crescem em segredo, as crianças. Escondem-se no mais oculto da casa para serem gato bravio, bétula branca.

Chega um dia em que estás descuidado a olhar o rebanho que regressa com a poeira da tarde, e uma delas, a mais bonita, aproxima-se em bicos de pés, diz-te ao ouvido que te ama, que te espera sobre o feno.

A tremer, vais buscar a caçadeira, e passas o resto da tarde a atirar sobre as gralhas, inumeráveis, àquela hora.

21
Dez
07

Poema para o meu amor doente

Hoje roubei todas as rosas dos jardins

e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

20
Dez
07

Nocturno de Lisboa

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,

cada homem procura um rio para dormir,

e com os pés na lua ou num grão de areia

enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.

Dez-réis de amor foram gastos a esperar.

O céu que nos promete um anjo bêbado

é um colchão sujo num quinto andar.

19
Dez
07

Há dias

Há dias em que julgamos

que todo o lixo do mundo nos cai

em cima. Depois

ao chegarmos à varanda avistamos

as crianças correndo no molhe

enquanto cantam.

Não lhes sei o nome. Uma

ou outra parece-se comigo.

Quero eu dizer: com o que fui

quando cheguei a ser

luminosa presença da graça,

ou da alegria.

Um sorriso abre-se então

num verão antigo.

E dura, dura ainda.

18
Dez
07

Outono

O Outono vem vindo, chegam melancolias,

cavam fundo no corpo,

instalam-se nas fendas; às vezes

por aí ficam com a chuva

apodrecendo;

ou então deixam marcas, as putas,

difíceis de apagar, de tão negras,

duras.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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