Arquivo de Março, 2008

28
Mar
08

O deserto

É o deserto – tenho quinze anos

e muito tempo para morrer.

Sentado na inclinação do sol

conto os meus dias

ou as pequenas hastes

do vento onde nenhuma ave

aproximava o céu.

Não há erro possível: oásis

ou mar das ilhas

só a palavra.

25
Mar
08

Nas ervas

Escalar-te lábio a lábio,

percorrer-te: eis a cintura,

o lume breve entre as nádegas

e o ventre, o peito, o dorso,

descer aos flancos, enterrar

 

os olhos na pedra fresca

dos teus olhos,

entregar-me poro a poro

ao furor da tua boca,

esquecer a mão errante

na festa ou na fresta

 

aberta à doce penetração

das águas duras,

respirar como quem tropeça

no escuro, gritar

às portas da alegria,

da solidão,

 

porque é terrível

subir assim às hastes da loucura,

do fogo descer à neve,

 

abandonar-me agora

nas ervas ao orvalho –

a glande leve.

24
Mar
08

tenho o nome de uma flor

Tenho o nome de uma flor

quando me chamas.

Quando me tocas,

nem eu sei

se sou água, rapariga,

ou algum pomar que atravessei.

20
Mar
08

In Memoriam (F.G.L.)

Noite aberta.

A lua tropeça nos juncos.

Que procura a lua?

A raiz do sangue?

Um rio que durma?

A voz delirando

no olival, exangue?

Sonâmbula,

que procura a lua?

O rosto da cal

que no rio flutua?

17
Mar
08

Entre as folhas negras da figueira

Entre as folhas negras da figueira

e os erros do ofício

passa o rio.

 

Que rio é esse?

Passa irmanado à luz pueril

dos cereais, à magoada

voz de quem perdeu o sono.

 

Leva com ele, entre o roxo

da sombra e as sílabas contadas,

um verão de abelhas,

a profusão do mel.

 

Sigo-lhe os passos, perco-me

com ele.

 

16
Mar
08

À minha porta

À minha porta senta-se outra vez

o Inverno. Traz consigo

o mar. Está velho

e magro o mar, negro de crude.

Também traz árvores; cegas

e sem nenhum pássaro:

mesmo sem vento cambaleiam.

Tenho dó das suas folhas

de barco na rua,

a respiração difícil.

Quem virá, injuriando o tempo,

sacudindo as grossas

gotas de frio?

Só um sorriso aceso

lhe aqueceria as mãos; do coração

não falo: não há lume

que o torne enxuto e novo.

14
Mar
08

O amigo

Não voltará – o que dele me ficou

é como no Inverno entre cortinas

de chuva um tímido fio de sol:

ilumina mas não aquece as mãos.

13
Mar
08

O peso da sombra

A noite já devia ter caído, a pele do rio escurecera. Vozes felizes afastavam-se luminosas, desciam as escadas de mansinho, enquanto as lágrimas não tardariam a rebentar no escuro.

Eles não sabiam que o lobo conseguira fugir e o caçador adormecera de cansaço debaixo da grande árvore vermelha. Sem o menor ruído a porta começara a abrir-se primeiro foram só uns olhos de lume, depois o animal todo entrou no quarto.

Se tivesse de morrer seria agora, o peso da sombra sobre o coração, empurrando-me para as águas, cada vez mais próximas e desertas.

11
Mar
08

Nevoeiro

Viera do rio pela mão de uma criança.

A cidade é agora de porcelana branca.

10
Mar
08

As razões do mundo

As razões do mundo

não são exactamente as tuas razões.

Viver de mãos acesas não é fácil,

viver é iluminar

 

de luz rasante a espessura do corpo,

a cegueira do muro.

Esse gosto a sangue

que trazia a primavera, se primavera havia,

 

não conduz à coroa do lume.

Os negros lençóis da água,

o excremento dos corvos marinhos

fazem parte da tua agonia.

 

E um sabor a sémen

que sempre a maresia traz consigo.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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