Arquivo de Junho, 2008

30
Jun
08

Na luz a prumo

Se as mãos pudessem (as tuas,

as minhas) rasgar o nevoeiro,

entrar na luz a prumo.

Se a voz viesse. Não uma qualquer:

a tua, e na manhã voasse.

E de júbilo cantasse.

Com as tuas mãos, e as minhas,

pudesse entrar no azul, qualquer

azul: o do mar,

o do céu, o da rasteirinha canção

da água corrente. E com elas subisse.

(A ave, as mãos, a voz.)

E fossem chama. Quase.

27
Jun
08

Mar de Setembro

Tudo era claro:

céu, lábios, areias.

O mar estava perto,

fremente de espumas.

Corpos ou ondas:

iam, vinham, iam,

dóceis, leves – só

ritmo e brancura.

Felizes, cantam;

serenos, dormem;

despertos, amam,

exaltam o silêncio.

Tudo era claro,

jovem, alado.

O mar estava perto.

Puríssimo. Doirado.

26
Jun
08

É um lugar ao sul

É um lugar ao sul, um lugar onde

a cal

amotinada desafia o olhar.

 

Onde viveste. Onde às vezes no sono

vives ainda. O nome prenhe de água

escorre-te da boca.

 

Por caminhos de cabras descias

à praia, o mar batia

naquelas pedras, naquelas sílabas.

 

Os olhos perdiam-se afogados

no clarão

do último ou do primeiro dia.

 

Era a perfeição.

 

NOTÍCIAS DA FUNDAÇÃO:

No próximo sábado, 28 de Junho, a Fundação Eugénio de Andrade terá o prazer de receber António Rebordão Navarro para mais uma sessão do ciclo “Encontros com Poetas do Porto II”. Como já vem sendo habitual, haverá uma breve apresentação do Poeta, seguida de leitura de poemas e de diálogo com o público. A sessão terá início às 18h30 e a entrada é livre.

 

25
Jun
08

O desejo

O desejo, o aéreo e luminoso

e magoado desejo latia ainda;

não sei bem em que lugar

do corpo em declínio mas latia;

bastava abrir os olhos para ouvir

o nasalado ardor da sua voz:

era a manhã trepando às dunas,

era o céu de cal onde o sul começa,

era por fim o mar à porta – o mar,

o mar, pois só o mar cantava assim.

23
Jun
08

Passeio Alegre

Chegaram tarde à minha vida

as palmeiras. Em Marraquexe vi uma

que Ulisses teria comparado

a Nausica, mas só

no jardim do Passeio Alegre

comecei a amá-las. São altas

como os marinheiros de Homero.

Diante do mar desafiam os ventos

vindos do norte e do sul,

do leste e do oeste,

para as dobrar pela cintura.

Invulneráveis — assim nuas.

15
Jun
08

Um rio te espera

Estás só, e é de noite,

na cidade aberta ao vento leste.

Há muita coisa que não sabes

e é já tarde para perguntares.

Mas tu já tens palavras que te bastem,

as últimas,

pálidas, pesadas, ó abandonado.

 

Estás só

e ao teu encontro vem

a grande ponte sobre o rio.

Olhas a água onde passaram barcos,

escura, densa, rumorosa

de lírios ou pássaros nocturnos.

 

Por um momento esqueces

a cidade e o seu comércio de fantasmas,

a multidão atarefada em construir

pequenos ataúdes para o desejo,

a cidade onde cães devoram,

com extrema piedade,

crianças cintilantes

e despidas.

 

Olhas o rio

como se fora o leito

da tua infância:

lembras-te da madressilva

no muro do quintal,

dos medronhos que colhias

e deitavas fora,

dos amigos a quem mandavas

palavras inocentes

que regressavam a sangrar,

lembras-te da tua mãe

que te esperava

com os olhos molhados de alegria.

 

Olhas a água, a ponte,

os candeeiros,

e outra vez a água;

a água;

água ou bosque;

sombra pura

nos grandes dias de verão.

 

Estás só.

Desolado e só.

E é de noite.

13
Jun
08

3º Aniversário da morte de Eugénio

Eugénio de Andrade - Ilustração de Cristina Valadas

Eugénio escorreu para outras fontes  há precisamente 3 anos. E tanto dele podemos ainda beber…

Às 11h de hoje, no cemitério do Prado do Repouso, terá lugar a cerimónia de trasladação dos restos mortais de Eugénio de Andrade, do jazigo municipal para o túmulo desenhado pelo arquitecto Siza Vieira.

 

 

Nota: A ilustração  encontra-se no livro “Os Dóceis Animais”

 

12
Jun
08

Corpo Habitado

Corpo num horizonte de água,

corpo aberto

à lenta embriaguez dos dedos,

corpo defendido

pelo fulgor das maçãs,

rendido de colina em colina,

corpo amorosamente humedecido

pelo sol dócil da língua.

 

Corpo com gosto a erva rasa

de secreto jardim,

corpo onde entro em casa,

corpo onde me deito

para sugar o silêncio,

ouvir

o rumor das espigas,

respirar

a doçura escuríssima das silvas.

 

Corpo de mil bocas,

e todas fulvas de alegria,

todas para sorver,

todas para morder até que um grito

irrompa das entranhas,

e suba às torres,

e suplique um punhal.

Corpo para entregar às lágrimas.

Corpo para morrer.

 

Corpo para beber até ao fim –

meu oceano breve

e branco,

minha secreta embarcação,

meu vento favorável,

minha vária, sempre incerta

navegação.

11
Jun
08

Já não se vê o trigo

Já não se vê o trigo,

a vagarosa ondulação dos montes.

Não se pode dizer que fossem contigo,

tu só levaste esse modo

 

infantil de saltar o muro,

de levar à boca

um punhado de cerejas pretas,

de esconder o sorriso no bolso,

 

certa maneira de assobiar às rolas

ou então pedir um copo de água,

e dormir em novelo,

como só os gatos dormem.

 

Tudo isso eras tu, sujo de amoras.

10
Jun
08

Balança

No prato da balança um verso basta

para pesar no outro a minha vida.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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