Olha-me rapidamente num convite
que não aceito, a promessa de prazer
cai então em olhos menos fatigados,
mas por instantes pude surpreender
um campo matinal de trevos orvalhados.
In: Escrita da Terra (1974)
Olha-me rapidamente num convite
que não aceito, a promessa de prazer
cai então em olhos menos fatigados,
mas por instantes pude surpreender
um campo matinal de trevos orvalhados.
In: Escrita da Terra (1974)
Para sempre um luar de naufrágio
anunciará a aurora fria
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.
Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo,
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silêncio
atravessada na garganta.
Não sei se te procuro ou se me esqueço
de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar de uma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidão bebida pelos bares,
nas mãos levemente adolescentes
pousadas na indolência dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra em sombra, nas ruas da cidade?
Ninguém te conheceu,
ninguém viu romper a luz na tua cama,
ninguém sabe, nnguém,
que o teu corpo, continente selvagem,
se desvelava por uma pedra branca
atirada contra o nevoeiro.
Por isso escrevo esta elegia
como quem oferece a luz dos olhos;
por isso canto o teu rosto afogado
como quem canta um funeral de espigas.
In: As Palavras Interditas (1951)
Não é o mar, não é o vento, é o sol
que me dói da cintura aos sapatos.
Sol de fins de Julho,
ou de Agosto a prumo: finas
agulhas de aço.
É o sol destes dias, aceso
na folhagem.
Bebendo a minha água.
Colado à minha pele.
É doutro território, doutro areal.
Tem outros ritmos, outros modos,
outros vagares para roer
a cal, morder-me os olhos.
Até quando cega canta ao arder.
In: Os Sulcos da Sede (2001)
Eu sentia os seus olhos beber os meus;
longamente bebiam, bebiam;
bebiam
até não me restar nas órbitas nenhuma
luz, nenhuma água,
nem sequer o sinal de neles ter chovido
naquele inverno.
In: Rente ao Dizer (1992)
Pela luz oblíqua devia ser inverno, um punhado de olhos procurava nos meus iluminados epitáfios. Não gosto de ser olhado assim, não tenho piedade nem rosas, conheço os guinchos pelo voo, venho dos lados do mar. São vagarosas as derradeiras luzes, também eu não tenho pressa: não entendo essas vozes, se me chamam não é por mim que chamam, que não sou daqui.
O filho pela mão, vamos por estas ruas esconjurando sombras, convocando dunas, potros, o sol ainda fresco, os cachorros latindo de alegria. Meus olhos vão à frente farejando, enquanto a mão dele ilumina a minha.
Ninguém esperava ver o mar naquele dia mas era o mar que estava ali à porta naqueles olhos. Um feliz Natal para todos!
Onde passou o vento são altas as ervas, e os olhos água só de olhar para elas.
O que do fundo de alguns olhos vem tão azul à superfície destina-se a transformar o que em nós é apetência de morte no mais limpo e matinal voo de cotovia (6.1.86)