Posts Tagged ‘morte

21
Maio
15

Escrita da terra

1.

Sê tu a palavra,

branca rosa brava.

2.

Só o desejo é matinal.

Poupar o coração

é permitir à morte

coroar-se de alegria.

4.

Morre

de ter ousado

na água amar o fogo.

Beber-te a sede e partir

– eu, que sou de tão longe.

Da chama à espada

o caminho é solitário.

7.

Que me quereis,

se me não dais

o que é tão meu?

In: Ostinato Rigore (1964)

05
Out
11

Em cada fruto a morte amadurece

Em cada fruto a morte amadurece,

deixando inteira, por legado,

uma semente virgem que estremece

logo que o vento a tenha desnudado.

 

In: As Mãos e os Frutos (1948) 

10
Mar
11

Metamorfoses da palavra

A palavra nasceu:

nos lábios cintila.

 

Carícia ou aroma,

mal pousa nos dedos.

 

De ramo em ramo voa,

na luz se derrama.

 

A morte não existe:

tudo é canto ou chama.

 

In: Até Amanhã (1956)

15
Jun
10

Discurso tardio à memória de José Dias Coelho

Éramos jovens: falávamos do âmbar

ou dos minúsculos veios de sol espesso

onde começa o vero; e sabíamos

como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,

desatando um a um os nós do silêncio.

Pegavas num fruto: eis o espaço ardente

de ventre, espaço denso, redondo maduro,

dizias; espaço diurno onde o rumor

do sangue é um rumor de ave –

repara como voa, e poisa nos ombros

da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também

ela, também ela a não tinha. Na planície

branca era uma fonte: em si trazia

um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,

morre-se de ter um corpo, quando subitamente

uma bala descobre a juventude

da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina, ou José – o que é um nome?

Que nome nos impede de morrer,

quando se beija a terra devagar

ou uma criança trazida pela brisa?

 

Mais sobre José Dias Coelho:

José Dias Coelho (Pinhel, 19 de Junho de 1923 — 19 de Dezembro de 1961) foi um militante político anti-fascista e escultor português. A sua carreira enquanto escultor é posta de parte quando opta pela luta anti-fascista e pela clandestinidade em 1955, o mesmo ano em que vê os primeiros sinais de reconhecimento público pelo seu trabalho artístico. Foi assassinado pela PIDE em 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, que hoje tem o seu nome, junto ao Largo do Calvário, em Lisboa. Nessa altura pertencia à Direcção da Organização Regional de Lisboa do Partido Comunista Português, e dirigia o Sector Intelectual. Presume-se que tenha sido denunciado. O seu assassinato levou o cantor Zeca Afonso a escrever e dedicar-lhe a música “A morte saiu à rua”. 

Só após o 25 de Abril foi possível levar a Tribunal os agentes da PIDE envolvidos na sua morte. Pertenciam à Brigada de José Gonçalves. Nunca confessaram a denúncia nem quem lhes dera ordens. Apenas um foi condenado – António Domingues -, o autor dos dois disparos que atingiram Dias Coelho. Mas a pena que lhe foi imputada – três anos e seis meses – indignou a comunidade democrática portuguesa no início de 1977.

07
Jun
10

À boca do poço

Às vezes, até a morte pode ser

condescendente: à boca do poço

pára o cavalo, não chega a desmontar,

mas consente que te demores

a contemplar as águas negras,

o rebanho dos chocalhos distantes,

as macieiras perto,

os seus frutos estranhamente acesos.

26
Jul
09

Seja isto dito assim

Seja isto dito assim, sem orgulho nem humildade, por não poder imaginar o homem reduzido à lama complacente dos próprios excrementos: para amar queria a terra toda, para morrer bastam-me os flancos do silêncio.

 

In: Memória Doutro Rio (1978)

06
Jul
09

Em memória de Chico Mendes

Chegam notícias do Brasil, o Chico
Mendes foi assassinado, a morte
enrola-se agora nos primeiros frios,
nem sequer a tristeza tem sentido,
a bola continua em órbita, um dia
estoira, o universo ficará mais limpo.
 
3-01-89
 
Mais sobre Chico Mendes…
Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como "Chico Mendes" (15 Dezembro de 1944 — Xapuri, 22 Dezembro de 1988), foi um seringueiro, sindicalista e activista ambiental brasileiro. Ficou conhecido internacionalmente pela luta que travou pela preservação da Floresta Amazónica e que conduziu ao seu assassinato (Mais sobre Chico Mendes: http://www.chicomendes.org/)
07
Jun
09

Eros Thanatos

1
Ó pureza apaixonadamente minha:
terra toda nas minhas mãos acesa.
 
2
O que sei de ti foi só o vento
a passar nos mastros do verão.
 
3
Um corpo apenas, barco ou rosa,
rumoroso de abelhas ou de espuma.
 
4
Entre lábios e lábios não sabia
se cantava ou nevava ou ardia.
 
5
Amo como as espadas brilham
no ardor indizível do dia.
 
6
Seria a morte esta carícia
onde o desejo era só brisa?
18
Maio
09

Não sei

Não sei porque diabo escolheste
janeiro para morrer: a terra
está tão fria.
É muito tarde para as lentas
narrativas do coração,
o vento continua
a tarefa das fohas:
cobre o chão de esquecimento.
Eu sei: tu querias durar.
Pelo menos durar tanto como o tronco
da oliveira que teu avô
tinha no quintal. Paciência,
querido, também Mozart morreu.
Só a morte é imortal.
16
Fev
09

Arrepio na tarde

Não sei quem, nem em que lugar,

mas alguém me deve ter morrido.

Senti essa morte num arrepio da tarde.

Qualquer amigo, um dos vários

que não conheço e só a poesia

sustenta. Talvez a morte fosse

outra: um pequeno réptil

no sol súbito e quente de Março

esmagado por pancada certeira;

um cão atropelado por um bruto

que, ao volante, se julga um deus

de arrabalde, com sucesso garantido

junto de três ou quatro putas de turno.

Talvez a de uma estrela, porque também

elas morrem, também elas morrem.

 

NOTÍCIAS DA FUNDAÇÃO:

 

O poeta e crítico brasileiro Marcos de Morais estará no próximo dia 28, pelas 18h30, na Fundação Eugénio de Andrade para falar das tendências da poesia pernambucana recente. A entrada é livre.

 




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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