Archive for the 'Contra a Obscuridade (1988)' Category

03
Set
13

Respira devagar, respira

Respira devagar, respira

uma vez mais

o sopro reticente do silêncio;

não oiças a mutilada voz do chão:

não é o primeiro orvalho

que chama por ti;

não abras as portas todas à lenta

e velha e turva baba

da tristeza;

respira esse rumor: nem mar nem ave,

apenas um ardor que também morre,

devagar.

In: Contra a Obscuridade (1988)

18
Set
11

Estão sentados quase lado a lado

Estão sentados quase lado a lado

no chão à espera que passe um barco,

a luz muito quieta

no regaço

 

como se fora um gato, o sorriso

antigo, a casa

à beira do crepúsculo

atenta aos passos nas areias;

 

era outra vez Abril,

chovia no jardim, já não chovia,

um aroma, apenas um aroma,

tornava espesso o ar.

 

Uma criança me leva rio acima.

 

In: Contra a Obscuridade (1988)

16
Mar
11

O azul, o azul rouco, o azul

O azul, o azul rouco, o azul

sem cor, luz gémea da sede.

Acerca deste rigor

tenho uma palavra a dizer,

uma sílaba a salvar

desta aridez, asa

ferida, o olhar arrastado

pela pedra

calcinada, húmido

ainda de ter pousado

à sombra de um nome,

o teu,

amor do mundo, amor de nada.

In: Contra a Obscuridade (1988)

19
Fev
10

Pela luz oblíqua devia ser Inverno

Pela luz oblíqua devia ser inverno,
um punhado de olhos procurava
nos meus
iluminados epitáfios.

Não gosto de ser olhado assim,
não tenho piedade
nem rosas, conheço os guinchos pelo voo,
venho dos lados do mar.

São vagarosas as derradeiras
luzes, também eu não tenho pressa:
não entendo essas vozes,
se me chamam não é por mim que chamam,

que não sou daqui.
13
Set
09

Também, também o pulso

Também, também o pulso,
também o pulso arde, e morre
a luz na pele;
 
arde com rumor de amêndoa
dentro do caroço,
de criança no escuro;
 
será por setembro, quando a água
da neve ainda não conhece
a boca dos poços;
 
quando a frágil alegria do olhar
quebra na sombra
o seu azul, o seu aroma.
26
Maio
09

Coda

Quando o ser da luz for
o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à agua),
então estarei em casa.
26
Mar
09

A claridade coroa-se de cinza

A claridade coroa-se de cinza, eu sei:

é sempre a tremer que levo o sol à boca.

01
Mar
09

O olhar desprende-se, cai de maduro

O olhar desprende-se, cai de maduro.

Não sei que fazer de um olhar

que sobeja na árvore,

que fazer desse ardor

 

que sobra na boca,

no chão aguarda subir à nascente.

Não sei que destino é o da luz,

mas seja qual for

 

é o mesmo do olhar: há nele

uma poeira fraterna,

uma dor retardada, alguma sombra

fremente ainda

 

de calhandra assustada.

21
Dez
08

Deixa que seja uma criança

Deixa que seja uma criança

a inclinar a tarde.

Dizem que é verão: não acredites.

O verão tem os pés iluminados pela lua,

 

o verão tem os nomes todos do mar,

não é o deserto

da cama aberta ao frio,

o prazer imitando a neve.

 

O que se vê daqui não é a dança

da claridade com o trigo,

o rio onde os cavalos bebem

a tarde a chegar ao fim.

 

Deixa que seja uma criança.

20
Set
08

Ensina-me, ensina-me como se faz

Ensina-me, ensina-me como se faz

do barro essa canção,

essa luz que vi mudada em pedra

viva nos teus olhos.

 

Estou a falar de mim como se não fora

estrangeiro, o espinho

indolor da neve cravado na garganta.

Já não desço à pequena praça

 

onde cantam os anjos: o anel

caiu à água.

Aqui, dizem, morre-se melhor: o ar

é frio, o campo raso, roxo o orvalho.

 

É pouco o que desejo,

e desse pouco me despeço.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
Maio 2024
S T Q Q S S D
 12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031  
“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

Blog Stats

  • 198.087 hits