Posts Tagged ‘poema

12
Maio
10

O caminho das dunas

Há um barco

há um homem nas areias.

Obscuramente aprende

a morrer onde as águas são mais duras.

Sei que é verão pelo hálito da loucura

o brilho em declínio das giestas

a caminho das dunas.

O homem adormecido

e a noite do poema eram de vidro.

 

In: Escrita da Terra (1974)

27
Ago
09

A chuva cai na poeira como no poema

A chuva cai na poeira como no poema
de Li Bai. No sul
os dias têm olhos grandes
e redondos; no sul o trigo ondula,
 
as suas crinas dançam no vento,
são a bandeira
desfraldada da minha embarcação;
 
no sul a terra cheira a linho branco,
a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água,
caindo na poeira, leve, acesa,
 
Como no poema.
17
Ago
09

Fim de verão

Talvez nem seja um tordo. Um pássaro
cantava. Seria o último
desse verão. A própria luz
 
não ajudava: não era barco
de manhã nem brisa ao fim da tarde.
Talvez o anjo do poema
 
pudesse em seu lugar subir aos ramos
e cantar. Mas os anjos
são tão distraídos! Deles não há
 
nada a esperar, a não ser fogo
de palha. Talvez nem seja um tordo.
O seu canto, só vibração do ar.
10
Jun
09

Árvores

Sem fadiga, as árvores regressam
ao poema. Primeiro as laranjeiras,
a seguir entram as tílias.
Sempre estiveram perto, incapazes
de se afastarem dos pequenos
olhos imensos.
À sombra dos cavalos
podia vê-las chegar carregadas
do seu aroma, dos seus frutos frios.
A tarde chegava ao fim
mas tive tempo ainda
de as sentir, com um sorriso, aproximar.
12
Maio
09

Os frutos

Assim eu queria o poema:
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.
23
Mar
09

Praça de Malá Strana

Gosto destes pombos, destas crianças.

A eternidade não pode ser senão assim:

pombos e crianças a fazerem

da luz incomparável da manhã

o lugar inocente do poema.

30
Jan
09

Trago os tordos na cabeça

Trago os tordos na cabeça desde os campos

d’Atalaia para pôr neste poema –

o vento deixava-nos à porta

ora uma luz rasteira ora um esfarelado

chiar de carros de feno,

dos ramos altos

a tarde caía nos cabelos,

vivíamos sem pressa rente aos lábios.

20
Jan
09

Sobre o desejo

Hei-de levar este esplendor para um poema, dizia eu, sempre que me estendia à sombra branca e miúda de uma oliveira. Mas fosse onde fosse, em terras de Corfu ou de Maiorca, nos campos de Siena ou no chão da minha infância, sempre adormeci sobre o desejo.

Hoje, que a violência do estio me levou a escavar a própria pedra, queria apenas uma dessas árvores de bruma, por mais exígua, e adormecer à sua sombra.

19
Jan
09

Agora as aves voltam

Agora as aves voltam, são nos ramos

altos a matéria

mais próxima dos anjos

– ousarei eu tocar-lhes,

fazer delas o poema?

 

Feliz aniversário Eugénio!

12
Out
08

São coisas assim

São coisas assim que tornam o coração

vulnerável: o regresso

das cegonhas brancas,

o comboiinho no ramal do Ceira

que parece de corda, as oito linhas

da Canção Nocturna do Viandante

que Shubert musicou.

Quem dividiu comigo a alegria

merecia ao menos

que o trouxesse à orvalhada

e limpa terra do poema. Mas também

o poeta escreve direito por linhas

tortas: a poesia é a ficção

da verdade. Não será

a curva apetecida do teu peito

mas os lémures de Madagáscar,

que só vi num filme francês,

o que verdadeiramente queria

hoje trazer ao poema.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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