Neste “O lugar dos amigos” é dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio – os seus colegas e amigos.
Carta a Eugénio de Andrade, por Mário Cláudio
25.06.2005
Eugénio,
Creio que se recordará daquele verso e meio de Keats, da “Ode to a Grecian Urn”, “Heard melodies are sweet but these unheard / Are sweeter”, insuperavelmente traduzido pelo Jorge de Sena como “música ouvida é doce, mas inda mais doce / A não ouvida”. Acontece que tem sido a memória desta passagem a agulha da bússola da amizade que lhe dedico, e falo dos meus maquinismos afectivos porque dos seus, Eugénio, só você estará em condições de tratar. Talvez em consequência disto mesmo cheguei a acreditar que os discos de vinil da sua colecção constituíam os únicos deste mundo a não sofrer desses riscos fatais que tanto perturbam a audição de quem como nós se enamora do absoluto, e se exaspera com ele.
Julgo que lhe dei conta destas superstições numa daquelas tardes de diálogo demorado, convidativas à confissão diante de uma limonada. A fé que eu mantinha na impecabilidade dos seus discos, Eugénio, não correspondia senão, percebo-o agora, ao tranquilo entusiasmo com que contemplava, e continuo a contemplar, o mais natural dos poetas da perfeição.
Nós, os desta cidade, crescemos à sua sombra como se, pertencendo você afinal a toda a gente, nos tivéssemos tornado por um motivo de vizinhança mais inclináveis no seu ombro. Sentado à mesa portátil, coberta com um pano de chintze, do apartamento da Rua do Duque de Palmela, o qual nos parecia bem mais da sua alma, Eugénio, do que o prédio onde habita agora, você conduzia-nos sem o declarar a que deduzíssemos que só escreve facilmente quem nada tem para dizer. E compreendíamo-lo no estatuto dos que não necessitam de se socorrer do cajado da inspiração, a fim de por inteiro se integrar na sorte que lhes coube de eternos inspirados. O mestre continuava a ser, Eugénio, o que não nos ensinava fosse o que fosse, mas esse com quem tudo, tudo aprendíamos.
Fomos assim concluindo que existem formas digníssimas de perder a face, bastando para tanto afirmar que a nossa única ambição é atingir um verso, ou que jamais ousámos meter alguém na nossa cama, se não em nome do poema que sobre essa noite haveríamos de deixar. Diante dos escavadores de oiro, de olhar pesado pelo velório da sua própria ambição, você explicou-nos, Eugénio, pelo silêncio das mãos e dos frutos como nos assiste o direito de transformar a observação das árvores no exclusivo, lentíssimo modo de vida que vale a pena. Da esfera humana de tal coragem será o humor verdadeiramente sulfúrico com que insiste você, Eugénio, em declinar a ternura e o tédio, ora chamando “alcachofra” a uma rapariga das letras que lhe toca a corda sensível, ora prometendo à pompa do académico que o presenteia com um dos seus opúsculos que o irá “tentar folhear”.
Lembra-se do pampilho, Eugénio? O meu dicionário descreve-o como “erva anual da família das compostas, subfamília das tubulifloras, tribo das antemídias, subtribo das crisanteminas, de folhas trifendido penitalibadas, as superiores sesséis e amplexicaules”. Foi destas flores amarelas que andámos à procura nos campos das cercanias do aeroporto num poente de Primavera dos inícios da liberdade. Quando eu pensava tê-la encontrado, à tal preciosidade, desiludiu-me você com a funda averiguação dos autênticos poetas, (ele) que é na poesia, não na natureza, que as plantas do grande achado se nos deparam, desenganando-me de fantasiar semelhante florescência que o seu empirismo de camponês, Eugénio, estabelecia ser rasamente a do nabo.
Os amigos são esses com quem se partilha o pranto que mora em nós, aqueles que sempre profetizam algum destino cego e letal. Você contava-me da sua mãe, Eugénio, de como para morrer se despedia dos livros amados pelo filho único, e acentuava, “não dos livros de que eu era autor”, reconhecendo-os como companheiros da tribo que nunca nos abandona. E não foi preciso que me informasse, Eugénio, num postal que vinha de Espanha mais do que isto, “Só agora aflorei o seu texto, mas já sei que me vai interessar”, para que me assaltasse a certeza da justificação dos dias que levava. Alguém descobriria entretanto um unicórnio no centro dos seus poemas, identificando-o com o horizonte para que tende o voo das aves. Ofereci-lhe portanto, Eugénio, um elefante minúsculo, de porcelana de Delft, o qual, não sendo exactamente o mesmo bicho, poderia talvez ir celebrando por algum tempo o tumultuoso diálogo de duas gerações.
Mas pergunto o que vim aqui trazer. Admito que algum grão de poeira nas sandálias, uma ou outra estrela esquecida, tudo quanto de transparente e de perene, de opaco e de interrompido, constitui o prémio dos que consigo se cruzaram, dos que de si receberam o direito, Eugénio, de o abraçar do coração.
Por isso é que sou muito seu
Mário Cláudio