Deixo ao Miguel as coisas da manhã –
a luz (se não estiver já corrompida)
a caminho do sul,
o chão limpo das dunas desertas,
um verso onde os seixos são
de porcelana,
o ardor quase animal
de uma romã aberta.
In: O Peso da Sombra (1982)
Deixo ao Miguel as coisas da manhã –
a luz (se não estiver já corrompida)
a caminho do sul,
o chão limpo das dunas desertas,
um verso onde os seixos são
de porcelana,
o ardor quase animal
de uma romã aberta.
In: O Peso da Sombra (1982)
Está desse lado do verão
onde manhã cedo
passam barcos, cercada pela cal.
Das dunas desertas tem a perfeição,
dos pombos o rumor,
da luz a difícil transparência
e o rigor.
In: Escrita da Terra (1974)
É o mar do deserto, ondulação
sem fim das dunas,
onde dormir, onde estender o corpo
sobre outro corpo, o peito vasto,
as pernas finas, longas,
as nádegas rijas, colinas
sucessivas onde o vento
demora os dedos, e as cabras
passam, e o pastor
sonha oásis perto,
e o verde das palmeiras se levanta
até à nossa boca, até à nossa alma
com sede de outras dunas,
onde o corpo do amor
seja por fim um gole de água.
Há um barco
há um homem nas areias.
Obscuramente aprende
a morrer onde as águas são mais duras.
Sei que é verão pelo hálito da loucura
o brilho em declínio das giestas
a caminho das dunas.
O homem adormecido
e a noite do poema eram de vidro.
In: Escrita da Terra (1974)
Era setembro ou outro mês qualquer propício a pequenas crueldades: a sombra aperta os seus anéis. Que queres tu ainda? O sopro das dunas sobre a boca? A luz quase despida? Fazer do corpo todo um lugar desviado do inverno?
A terra me sabes,
à luz das manhãs
lisas de verão,
ao calor das pedras
achadas nas dunas.
Apetece cantar
nos gomos, nas luas,
nas colinas breves
do teu corpo nu;
cantar ou correr
na água, na seiva
dos ombros, dos braços,
no azul secreto
da concha das pernas.
Ó sabor eterno,
ó mortal sabor
das fontes da terra,
materno, solar
rumor de alegria:
apetece morrer,
morrer ou cantar.
Rosto despido, magra fonte
dos dias – assim começa a breve
fala que escuto
vinda de longe, assim o nome
desse cristal,
o tão amado e perdido
olhar; assim do prado branco
as águas de junho
ou de setembro descem ao mar;
assim as dunas onde as aves
pousam leve ou nos lábios
o canto arde;
assim a neve.
Diz, diz uma vez mais o que não pode
morrer:
a luz, que no sul é inocente
e trepa aos pinheiros;
o trote miúdo das manhãs de junho;
o azul a pique do falcão;
as dunas, com sinais ainda
de outro verão para levar à boca.