Arquivo de Maio, 2010

25
Maio
10

O inominável

Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
– nem sequer sabemos se tens nome.

23
Maio
10

Ocultas águas

Um sopro quase,
Esses lábios.
 
Lábios? Disse lábios,
areias?
Lábios. Com sede
ainda de outros lábios.
 
Sede de cal.
Quase lume.
Lume
quase de orvalho.
 
Lábios:
ocultas águas.
21
Maio
10

Estou contente, não devo nada à vida

Estou contente, não devo nada à vida,

e a vida deve-me apenas

dez réis de mel coado.

Estamos quites, assim

o corpo já pode descansar: dia

após dia lavrou, semeou,

também colheu, a até

alguma coisa dissipou, o pobre,

pobríssimo animal,

agora de testículos aposentados.

Um dia destes vou-me estender

debaixo da figueira, aquela

que vi exasperada e só, há muitos anos:

pertenço à mesma raça.

17
Maio
10

Este país é um corpo exasperado

Este pais é um corpo exasperado,

a luz da névoa rente ao peito,

a febre alta à roda da cintura.

O país de que te falo é o meu,

não tenho outro onde acender o lume

ou colher contigo o roxo das manhãs.

Não tenho outro, nem isso importa,

este chega e sobra para repartir

com os corvos – somos amigos.

14
Maio
10

É um dos teus mais bonitos sorrisos

É um dos teus mais bonitos sorrisos

este Inverno

entornado nas areias.

Entrou pela varanda

com a espuma das vozes infantis.

E com os gatos dos telhados

não tardará a partir.

12
Maio
10

O caminho das dunas

Há um barco

há um homem nas areias.

Obscuramente aprende

a morrer onde as águas são mais duras.

Sei que é verão pelo hálito da loucura

o brilho em declínio das giestas

a caminho das dunas.

O homem adormecido

e a noite do poema eram de vidro.

 

In: Escrita da Terra (1974)

11
Maio
10

Na varanda de Florbela

Um poema trazido até ao “Sal da Língua” pela Marta.

Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planície, a lua,
e ao vento deste o olhar a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.

 Aqui vieram bailar as estações
e com elas tu bailaste.
Aqui mordeste os seios por abrir,
fechaste o corpo à sede das searas
e no lume de ti própria te queimaste.

10
Maio
10

Outro poema para o meu amor doente

Outono, pássaro da melancolia

num céu sem cor que não promete nada,

mar de insónia onde o teu corpo paira

ou um aroma de terra molhada.

09
Maio
10

Setembro: que lugar

Setembro: que lugar

para dormir — ou nessas folhas

ardendo pelo chão da tarde.

Como partir, deixar deserta

a casa errante

e diminuta do olhar?

A que nos resta.

03
Maio
10

O lugar dos amigos – José Pacheco Pereira

Neste “O lugar dos amigos” é dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio – os seus colegas e amigos.

Adeus, por José Pacheco Pereira (25.06.2005)

Conheci o Eugénio por volta de 1965, tinha ele acabado de escrever o “Ostinato Rigore”. Mais à frente voltarei a este livro, um marco na obra do Eugénio e, de algum modo, na sua vida. Tinha publicado sobre ele um texto ingénuo e juvenil no jornal do liceu, mas que não enganava no entusiasmo. O Eugénio quis conhecer-me e iniciámos uma longa amizade, entrecortada durante vários anos pelas minhas itinerâncias, e retomada por correspondência nos seus últimos anos de lucidez. A última vez que o encontrei foi depois do seu aniversário, pouco antes de morrer e entrava pelos olhos dentro que iria ser o último encontro. Eu sabia, ele não.

O Eugénio mudou a minha vida muito para além da amizade, porque me “educou”, dando-me a ler e discutindo (mais conversando do que discutindo) o que lia. Por mão dele li “A Montanha Mágica”, a “Morte em Veneza”, de Mann, “Narciso e Goldmundo” de Hesse, as “Memórias de Adriano” da Marguerite Yourcenar, os “Cadernos de Malte” de Rilke, muita poesia, Hölderlin, Rilke, Novalis, Goethe, nas traduções de Quintela, Lorca, nas do próprio Eugénio, Walt Withman, Eliot, Pound, Apollinaire, Michaux, René Char, Perse, Valéry, muitos na colecção dos “Poètes d”Aujourd”hui” da Seghers. Mas não eram só livros, eram também poemas isolados. Poemas individuais, de Cernuda, Vicente Aleixandre, Antonio Machado, as “Coplas por la muerte de su padre” de Jorge Manrique, muita da poesia espanhola que ele amava e o tinha “feito”, “La Complainte” de Rutebeuf, Villon, Shakespeare, enfim, quase tudo. Tudo certo e na altura certa, porque se há coisas que os amadores de palavras sabem é que há alturas certas para ler determinados livros e eles só são os “livros da nossa vida” quando são lidos nessa altura. Depois passa.

Já o contei. Não eram apenas os livros, eram os livros que o próprio Eugénio lera e que deixara marcados com as suas anotações pessoais, os sublinhados; o traço ao lado, umas vezes acrescentado ao sublinhado, aumentando o interesse, outras vezes sem o sublinhando, denotando um interesse menor; o clímax, para a prosa, dos dois traços ao lado como em partes do diálogo em francês de Hans Castorp com Cláudia Chauchat; o asterisco, ou dois ou três, marcando poemas ou linhas de poemas, às vezes, mais raras, um ponto de exclamação ou de interrogação. Os versos do asterisco ficavam sempre, como estes de Sá de Miranda

“O sol é grande: caem coa calma as aves,

Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.”

ou o solitário

“Que Farei Quando Tudo Arde?”

ou o de Rimbaud

“Oisive jeunesse

À tout asservie;

Par délicatesse

J” ai perdu ma vie.”

e muitos outros asteriscos ao lado das palavras que ficam “nossas”.

Nesses primeiros anos de amizade, o Eugénio fez as suas antologias sobre o Porto, mais tarde sobre Coimbra, escreveu textos para catálogos dos amigos comuns, o José Rodrigues, o Ângelo, o Armando Alves, publicou pequenas edições quase confidenciais de meia dúzia de poemas, reviu as suas traduções de Lorca. Trabalhei com ele no volume sobre o Porto, o “Daqui Houve Nome Portugal”, e um pouco em todas as outras coisas, recolhendo a sua bibliografia para uma antologia de ensaios na qual reincidi com um outro texto marcado pelo mesmo entusiasmo juvenil, que não se repete. Mas, nesses anos, escreveu muito pouca poesia.

Quando o conheci, o Eugénio estava convencido de que a sua voz secara. Secara de uso, secara de sede, secara porque as palavras se tinham transformado em grãos de areia e já não fluíam. Mais: ele estava convencido que isso não se devia a uma crise da sua escrita, mas a uma consequência natural do modo como escrevia poesia. Tinha levado tão longe a contenção, o valor único de cada palavra, a perfeição formal do poema – a que Eugénio dava uma grande atenção, ele que era tudo menos repentista – que tinha encontrado a face do silêncio, tinha chegado naturalmente ao silêncio. A crise do “Ostinato Rigore” era isso, as palavras tinham-se de tal modo incrustado em si mesmas, que não corriam, não voavam, não fluíam como um rio, eram apenas seixos. Eugénio tinha levado tão longe quanto sabia e podia o seu perfeccionismo formal, o seu “rigor”, nas palavras, que temia que elas só fossem perfeitas assim, sólidas. Encontrava, em Quasimodo e Montale, o mesmo processo, dois autores a que muito se referia quando falava da poética do “Ostinato Rigore”.

Depois recomeçou de novo a escrever poesia. A música teve nesse retomar da palavra um papel importante. Eugénio participava num ritual periódico de audição dos discos que Manuel Dias da Fonseca, amigo, poeta e melómano, fazia na sua casa de Matosinhos. Lembro-me da surpresa que teve a primeira vez que ouviu a voz de Alfred Deller, a cantar versos de Shakespeare e canções de Purcell, e do gosto por Bach, por Haydn, por Mozart, pelos quartetos de Beethoven. Várias vezes se referiu a Mozart, como seu émulo, mas se se sentia mais próximo de Mozart pelo gosto, reconhecia nos Quartetos uma dimensão trágica que sabia humana, mesmo que em grande parte alheia à sua poesia pagã. As viagens que fez, à Grécia em particular, também o levaram a esse retomar da poesia, assim como a consciência da experiência que se aproximava e que ele mais temia: a da idade.

Pouco a pouco, fomo-nos vendo menos. A política pura e dura dos anos setenta, a distância, alguma desatenção, mais minha do que dele, que várias vezes protestou, até em público, espaçou os nossos encontros. É a vida que é assim, e talvez lhe tenha faltado em momentos em que precisava. Não sei, talvez. Ele, pelo contrário, continuava perto e nunca a sua palavra se afastou de mim, do mesmo encantamento inicial, da surpresa que a grande poesia traz consigo – como é possível escrever assim, ver estas palavras assim, dizer isto assim? Ele sabia como.

Adeus.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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