Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
– nem sequer sabemos se tens nome.
Arquivo de Maio, 2010
O inominável
Ocultas águas
Estou contente, não devo nada à vida
Estou contente, não devo nada à vida,
e a vida deve-me apenas
dez réis de mel coado.
Estamos quites, assim
o corpo já pode descansar: dia
após dia lavrou, semeou,
também colheu, a até
alguma coisa dissipou, o pobre,
pobríssimo animal,
agora de testículos aposentados.
Um dia destes vou-me estender
debaixo da figueira, aquela
que vi exasperada e só, há muitos anos:
pertenço à mesma raça.
Este país é um corpo exasperado
Este pais é um corpo exasperado,
a luz da névoa rente ao peito,
a febre alta à roda da cintura.
O país de que te falo é o meu,
não tenho outro onde acender o lume
ou colher contigo o roxo das manhãs.
Não tenho outro, nem isso importa,
este chega e sobra para repartir
com os corvos – somos amigos.
É um dos teus mais bonitos sorrisos
É um dos teus mais bonitos sorrisos
este Inverno
entornado nas areias.
Entrou pela varanda
com a espuma das vozes infantis.
E com os gatos dos telhados
não tardará a partir.
O caminho das dunas
Há um barco
há um homem nas areias.
Obscuramente aprende
a morrer onde as águas são mais duras.
Sei que é verão pelo hálito da loucura
o brilho em declínio das giestas
a caminho das dunas.
O homem adormecido
e a noite do poema eram de vidro.
In: Escrita da Terra (1974)
Na varanda de Florbela
Um poema trazido até ao “Sal da Língua” pela Marta.
Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planície, a lua,
e ao vento deste o olhar a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.
Aqui vieram bailar as estações
e com elas tu bailaste.
Aqui mordeste os seios por abrir,
fechaste o corpo à sede das searas
e no lume de ti própria te queimaste.
Outro poema para o meu amor doente
Outono, pássaro da melancolia
num céu sem cor que não promete nada,
mar de insónia onde o teu corpo paira
ou um aroma de terra molhada.
Setembro: que lugar
Setembro: que lugar
para dormir — ou nessas folhas
ardendo pelo chão da tarde.
Como partir, deixar deserta
a casa errante
e diminuta do olhar?
A que nos resta.
Neste “O lugar dos amigos” é dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio – os seus colegas e amigos.
Adeus, por José Pacheco Pereira (25.06.2005)
Conheci o Eugénio por volta de 1965, tinha ele acabado de escrever o “Ostinato Rigore”. Mais à frente voltarei a este livro, um marco na obra do Eugénio e, de algum modo, na sua vida. Tinha publicado sobre ele um texto ingénuo e juvenil no jornal do liceu, mas que não enganava no entusiasmo. O Eugénio quis conhecer-me e iniciámos uma longa amizade, entrecortada durante vários anos pelas minhas itinerâncias, e retomada por correspondência nos seus últimos anos de lucidez. A última vez que o encontrei foi depois do seu aniversário, pouco antes de morrer e entrava pelos olhos dentro que iria ser o último encontro. Eu sabia, ele não.
O Eugénio mudou a minha vida muito para além da amizade, porque me “educou”, dando-me a ler e discutindo (mais conversando do que discutindo) o que lia. Por mão dele li “A Montanha Mágica”, a “Morte em Veneza”, de Mann, “Narciso e Goldmundo” de Hesse, as “Memórias de Adriano” da Marguerite Yourcenar, os “Cadernos de Malte” de Rilke, muita poesia, Hölderlin, Rilke, Novalis, Goethe, nas traduções de Quintela, Lorca, nas do próprio Eugénio, Walt Withman, Eliot, Pound, Apollinaire, Michaux, René Char, Perse, Valéry, muitos na colecção dos “Poètes d”Aujourd”hui” da Seghers. Mas não eram só livros, eram também poemas isolados. Poemas individuais, de Cernuda, Vicente Aleixandre, Antonio Machado, as “Coplas por la muerte de su padre” de Jorge Manrique, muita da poesia espanhola que ele amava e o tinha “feito”, “La Complainte” de Rutebeuf, Villon, Shakespeare, enfim, quase tudo. Tudo certo e na altura certa, porque se há coisas que os amadores de palavras sabem é que há alturas certas para ler determinados livros e eles só são os “livros da nossa vida” quando são lidos nessa altura. Depois passa.
Já o contei. Não eram apenas os livros, eram os livros que o próprio Eugénio lera e que deixara marcados com as suas anotações pessoais, os sublinhados; o traço ao lado, umas vezes acrescentado ao sublinhado, aumentando o interesse, outras vezes sem o sublinhando, denotando um interesse menor; o clímax, para a prosa, dos dois traços ao lado como em partes do diálogo em francês de Hans Castorp com Cláudia Chauchat; o asterisco, ou dois ou três, marcando poemas ou linhas de poemas, às vezes, mais raras, um ponto de exclamação ou de interrogação. Os versos do asterisco ficavam sempre, como estes de Sá de Miranda
“O sol é grande: caem coa calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.”
ou o solitário
“Que Farei Quando Tudo Arde?”
ou o de Rimbaud
“Oisive jeunesse
À tout asservie;
Par délicatesse
J” ai perdu ma vie.”
e muitos outros asteriscos ao lado das palavras que ficam “nossas”.
Nesses primeiros anos de amizade, o Eugénio fez as suas antologias sobre o Porto, mais tarde sobre Coimbra, escreveu textos para catálogos dos amigos comuns, o José Rodrigues, o Ângelo, o Armando Alves, publicou pequenas edições quase confidenciais de meia dúzia de poemas, reviu as suas traduções de Lorca. Trabalhei com ele no volume sobre o Porto, o “Daqui Houve Nome Portugal”, e um pouco em todas as outras coisas, recolhendo a sua bibliografia para uma antologia de ensaios na qual reincidi com um outro texto marcado pelo mesmo entusiasmo juvenil, que não se repete. Mas, nesses anos, escreveu muito pouca poesia.
Quando o conheci, o Eugénio estava convencido de que a sua voz secara. Secara de uso, secara de sede, secara porque as palavras se tinham transformado em grãos de areia e já não fluíam. Mais: ele estava convencido que isso não se devia a uma crise da sua escrita, mas a uma consequência natural do modo como escrevia poesia. Tinha levado tão longe a contenção, o valor único de cada palavra, a perfeição formal do poema – a que Eugénio dava uma grande atenção, ele que era tudo menos repentista – que tinha encontrado a face do silêncio, tinha chegado naturalmente ao silêncio. A crise do “Ostinato Rigore” era isso, as palavras tinham-se de tal modo incrustado em si mesmas, que não corriam, não voavam, não fluíam como um rio, eram apenas seixos. Eugénio tinha levado tão longe quanto sabia e podia o seu perfeccionismo formal, o seu “rigor”, nas palavras, que temia que elas só fossem perfeitas assim, sólidas. Encontrava, em Quasimodo e Montale, o mesmo processo, dois autores a que muito se referia quando falava da poética do “Ostinato Rigore”.
Depois recomeçou de novo a escrever poesia. A música teve nesse retomar da palavra um papel importante. Eugénio participava num ritual periódico de audição dos discos que Manuel Dias da Fonseca, amigo, poeta e melómano, fazia na sua casa de Matosinhos. Lembro-me da surpresa que teve a primeira vez que ouviu a voz de Alfred Deller, a cantar versos de Shakespeare e canções de Purcell, e do gosto por Bach, por Haydn, por Mozart, pelos quartetos de Beethoven. Várias vezes se referiu a Mozart, como seu émulo, mas se se sentia mais próximo de Mozart pelo gosto, reconhecia nos Quartetos uma dimensão trágica que sabia humana, mesmo que em grande parte alheia à sua poesia pagã. As viagens que fez, à Grécia em particular, também o levaram a esse retomar da poesia, assim como a consciência da experiência que se aproximava e que ele mais temia: a da idade.
Pouco a pouco, fomo-nos vendo menos. A política pura e dura dos anos setenta, a distância, alguma desatenção, mais minha do que dele, que várias vezes protestou, até em público, espaçou os nossos encontros. É a vida que é assim, e talvez lhe tenha faltado em momentos em que precisava. Não sei, talvez. Ele, pelo contrário, continuava perto e nunca a sua palavra se afastou de mim, do mesmo encantamento inicial, da surpresa que a grande poesia traz consigo – como é possível escrever assim, ver estas palavras assim, dizer isto assim? Ele sabia como.
Adeus.