Estive sempre sentado nesta pedra escutando, por assim dizer, o silêncio. Ou no lago cair um fiozinho de água. O lago é o tanque daquela idade em que não tinha o coração magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo, dói tanto! Todo o amor. Até o nosso, tão feito de privação.) Estou onde sempre estive: à beira de ser água. Envelhecendo no rumor da bica por onde corre apenas o silêncio.
Arquivo de Janeiro, 2010
29
Jan
10
À beira de água
24
Jan
10
Souvenir Africain
O gato aproximou-se, escutando também ele o silêncio hirto das palmeiras, que são no horizonte a primeira coisa verdadeira que nos assoma aos olhos, mesmo antes de haver o que possa chamar-se claridade. O casario afogado no escuro respira anónimo e reles, a face encardida, a fenda estreita da boca por onde dificilmente passará a luz, que de súbito rompeu no terraço e não tardará a escaldar. Depois o sol acalma, e lá para o fim da tarde uma sombra mole escorre do muro para o cimento aquecido. É então que o gato se transforma em cadela, arrastando-se até aos nossos pés, deitando-se de costas, o ventre carnudo ávido do prazer profundo que lhe oferece por fim a mão. 5.6.85
21
Jan
10
Olhos postos na terra, tu virás
Olhos postos na terra, tu virás no ritmo da própria primavera, e como as flores e os animais abrirás nas mãos de quem te espera.
Outono, pássaro da melancolia num céu sem cor que não promete nada, mar de insónia onde o teu corpo paira ou um aroma de terra molhada.
15
Jan
10
Contraponto
Oiço-a ainda longe, a neve. Vai chegar um dia com a luz de novembro, antes passará pelos teus lábios. E serás condescendente, a ponto de lhe indicares o caminho mais longo, o que leva ao bosque onde te peguei na mão sem coragem para a levar à boca. A neve tem esse lado acolhedor de farol no escuro. Antes de nos soterrar o coração.
09
Jan
10
Ardendo na sombra
Tu estavas ali, perto da laranjeira. (Porque havia uma laranjeira ao lado da casa.) Estavas ali, as mãos iluminadas. A luz vinha dos frutos ardendo na sombra. A laranjeira ainda lá se encontra. E tu? Ainda aí estás? Ao longe erguia-se a poeira quando o rebanho ao fim da tarde passava – era verão. Só no verão a poeira se levanta assim sem haver vento. No tanque, um fio débil de água servia para nos sentarmos à beira do seu rumor. Eu era pequeno e tu uma mulher triste. Essa tristeza é ainda minha. Mas só ela. E a laranjeira.
06
Jan
10
Fazer do olhar o gume certo
Fazer do olhar o gume certo, atravessar a água corrompida, no avesso da sombra soletrar o rosto ardido da sede antiga.
03
Jan
10
Requiem para Pier Paolo Pasolini
Eu pouco sei de ti mas este crime torna a morte ainda mais insuportável. Era novembro, devia fazer frio, mas tu já nem o ar sentias, o próprio sexo que sempre fora fonte agora apunhalado. Um poeta, mesmo solar como tu, na terra é pouca coisa: uma navalha, o rumor de abril podem matá-lo – amanhece, os primeiros autocarros já passaram, as fábricas abrem os portões, os jornais anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira página, o sangue apodrece o brilhará ao sol, se o sol vier, no meio das ervas. O assassino, esse seguirá dia após dia a insultar o amargo coração da vida; no tribunal insinuará que respondera apenas a uma agressão (moral) com outra agressão, como se alguém ignorasse, excepto claro os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie confundem moral com o próprio cu. O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores como móbil de um crime que os fascistas, e não só os de Salò, não se importariam de assinar. Sea qual for a razão, e muitas há, que o Capital a Igreja e a Polícia de mãos dadas estão sempre prontos a justificar, Pier Paolo Pasolini está morto. A farsa, a nojenta farsa, essa continua. Novembro, 1975 Mais sobre Pier Paolo Pasolini… Pier Paolo Pasolini (Março 1922 - Novembro 1975) foi um poeta, novelista e cineasta italiano. Filho de um oficial fascista e de uma mãe anti-Mussolini, Pasolini passou grande parte da sua infância em Casarsa della Delizia, a nordeste de Veneza. Em 1937 regressa à sua cidade natal, onde estuda história e literatura na Universidade de Bolonha. Publica, nesta altura, artigos na revista estudantil Architrave e começa a escrever poemas, editando a sua primeira colectânea, em edição de autor, no ano de 1942 (Poesia a Carsasa). Ainda jovem filia-se no Partido Comunista de onde viria a ser expulso por alegada homossexualidade, mas manter-se-á fiel à ideologia comunista até à sua morte. A partir de 1949, a actividade literária de Pasolini intensifica-se, escreve poemas e romances, trazendo a publicação das duas primeiras partes de uma trilogia, Ragazzi di Vita (1955) e Una Vita Violenta (1959), a sua consagração enquanto escritor. Foi, e ainda é, considerado um dos mais importantes e polémicos escritores italianos do século XX, tendo construído uma obra que reflecte as suas preocupações sociais e os seus ideais políticos. Mas a fama internacional de Pasolini deve-se sobretudo à sua carreira cinematográfica. Iniciou-se como actor na década de 50 e estreou-se como realizador em 1961 com Accatone, uma adaptação do seu romance Una Vita Violenta. Os seus filmes abordam temas tão opostos como a religião (Il Vangelo secondo Matteo, 1964) e a sexualidade (Il Fiore delle Mille e une Notte, 1973), apresentando muitas vezes perspectivas controversas que nem sempre foram bem aceites pelo público. Autor de poemas, romances, ensaios, argumentos, realizador e teórico de cinema, Pasolini foi uma figura polémica do século XX italiano. A sua morte violenta, em 1975, é vista por alguns como um assassinato por motivos políticos. Fonte: www.assirio.com
02
Jan
10
Sobre o coração
Eras a casa, o lugar onde o sol ardia sobre a pedra, a pedra sobre o mundo, o mundo sobre o coração. Como podias, uma a uma, suportar as lágrimas do mundo, ninguém sabia: o lugar do sol era a casa – e ardia.