Posts Tagged ‘coração

21
Maio
15

Escrita da terra

1.

Sê tu a palavra,

branca rosa brava.

2.

Só o desejo é matinal.

Poupar o coração

é permitir à morte

coroar-se de alegria.

4.

Morre

de ter ousado

na água amar o fogo.

Beber-te a sede e partir

– eu, que sou de tão longe.

Da chama à espada

o caminho é solitário.

7.

Que me quereis,

se me não dais

o que é tão meu?

In: Ostinato Rigore (1964)

18
Jul
11

Herança

É a minha herança: o sorriso,

o azul de uma pedra branca.

Posso juntar-lhe, ao acaso da memória,

um ramo de madressilva inclinado

para as abelhas que metodicamente fazem

do outono o lugar preferido do verão,

um melro que deixou o jardim público

para fazer ninho num poema meu,

um barco chamado Cavalinho na Chuva

à espera de reparação no molhe da Foz.

Deve haver mais alguma coisa,

não serei tão pobre, cometemos sempre

a injustiça de não referir, por pudor,

coisas mais íntimas: um verso de Safo

traduzido por Quasimodo, a mão

que por instantes nos pousou no joelho

e logo voou para muito longe,

as cadências do coração

teimoso em repetir que não envelheceu.

 

In: Os Sulcos da Sede (2001)

01
Set
10

Fecundou-te a vida nos pinhais

Fecundou-te a vida nos pinhais.

Fecundou-te de seiva e de calor.

Alargou-te o corpo pelos areais

onde o mar se espraia sem contorno e cor.

Pôs-te sonho onde havia apenas

silêncio de rosas por abrir,

e um jeito nas mãos morenas

de quem sabe que o fruto há-de surgir.

Brotou água onde tudo era secura.

Paz onde morava a solidão.

E a certeza de que a sepultura

é uma cova onde não cabe o coração.

29
Jan
10

À beira de água

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.
15
Jan
10

Contraponto

Oiço-a ainda longe, a neve.
Vai chegar um dia com a luz de novembro,
antes passará pelos teus lábios.
E serás condescendente,
a ponto de lhe indicares o caminho
mais longo,
o que leva ao bosque onde
te peguei na mão
sem coragem para a levar à boca.
A neve tem esse lado acolhedor
de farol no escuro.
Antes de nos soterrar o coração.
29
Jun
09

Sobre flancos e barcos

Havia ainda outro jardim o da minha vida
exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães não sei
é sempre a mesma inquietação
 
este delírio branco ou o rumor
da chuva sobre flancos e barcos
o Inverno vai chegar
na palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem
 
era o sopro distante das manhãs sobre o mar
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar.
29
Mar
09

A uma fonte

Fonte pura, fonte fria…

(Onde vais, minha canção?)

Fonte pura… assim queria

que fosse meu coração:

fluir na noite e no dia

sem se desprender do chão.

31
Jan
09

Poema à mãe

No mais fundo de ti

eu sei que te traí, mãe.

 

Tudo porque já não sou

o menino adormecido

no fundo dos teus olhos.

 

Tudo porque ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais.

 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

 

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura.

 

Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos.

 

Mas tu esqueceste muita coisa;

esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!

 

Olha – queres ouvir-me? –

Às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;

 

ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;

 

Ainda oiço a tua voz:

era uma vez uma princesa

no meio do laranjal…

 

Mas – tu sabes – a noite é enorme,

e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.

 

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

 

27
Nov
08

Coração habitado

Aqui estão as mãos.

São os mais belos sinais da terra.

Os anjos nascem aqui:

frescos, matinais, quase de orvalho,

de coração alegre e povoado.

 

Ponho nelas a minha boca,

respiro o sangue, o seu rumor branco,

aqueço-as por dentro, abandonadas

nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

 

Alguns pensam que são as mãos de deus

  eu sei que são as mãos de um homem,

trémulas barcaças onde a água,

a tristeza e as quatro estações

penetram, indiferentemente.

 

Não lhes toquem: são amor e bondade.

Mais ainda: cheiram a madressilva.

São o primeiro homem, a primeira mulher.

E amanhece.

30
Out
08

A custo

Embora a custo, desprende-se,

abandona-me,

o verão – ganhara raízes

fundas no que fora

terra aberta ao seu fulgor.

Deixou marcas, o cabrão:

dói-me a cara toda, o cabelo,

os lábios, sobretudo

as pálpebras porosas.

Vai sendo tempo de

considerar as minúsculas veredas

que por todo o corpo correm

não sei para que estrela,

escutar com atenção

a narrativa do silêncio.

Por mais solar

que seja o coração chega-se sempre

a isto – e isto

tem a forma da elegia

onde um rio e outro rio vão morrendo.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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