Posts Tagged ‘ave

11
Maio
15

A outra morada

É de Shumann, a música.

Dói, acalma, é transparência

última da rosa, a de Dante

no Paraíso;

não há outra morada,

outro cristal, outra ave;

há somente esse rio, esse gume

que fere, apazigua,

o corpo, a alma – quem sabe?

In: Rente ao Dizer (1992)

10
Mar
14

De ramo em ramo

O branco do linho ou dos muros

do sul,

o carmim matutino,

 

o claro azul mediterrâneo, o limão

húmido ainda,

o laranja, o verde das oliveiras

 

prateado, o amarelo exausto

da glória, o violeta adormecido

da flor que lhe dá um nome,

 

o ocre do trigo ceifado,

o negro quase

materno da terra lavrada,

 

é nos olhos que são ave

de ramo em ramo concertada.

 

In: Os Lugares do Lume (1998)

03
Set
13

Respira devagar, respira

Respira devagar, respira

uma vez mais

o sopro reticente do silêncio;

não oiças a mutilada voz do chão:

não é o primeiro orvalho

que chama por ti;

não abras as portas todas à lenta

e velha e turva baba

da tristeza;

respira esse rumor: nem mar nem ave,

apenas um ardor que também morre,

devagar.

In: Contra a Obscuridade (1988)

30
Jan
13

Narrativa da neve

Vem o vento

e ninguém sabe se virá mais cedo

o inverno. Vem e deixa no telhado

algumas sílabas.

O trabalho da boca para não morrer

É juntá-las, fazer um diadema, coroar

a neve, o azul da neve,

na mais frágil haste.

São coisas tuas:

cintilações a que chamas ave.


In: Ofício da Paciência (1994)

//

25
Jul
12

Plenamente

A boca,

 

onde o fogo

de um verão

muito antigo

 

cintila,

 

a boca espera

 

(que pode uma boca

esperar

senão outra boca?)

 

esperar o ardor

do vento

para ser ave,

 

e cantar.


In: Obscuro Domínio (1972)

11
Out
10

Antes de saber

Até onde os dedos tocam o quente

do barro a mão sabe

antes de saber.

É um saber mais vivo, um saber

de ave: águia cegonha falcão,

animais quase no fim

como o lume destes dias.

Testemunhar a favor do lince

é nossa obrigação.

Por ser azul.

In: Ofício de Paciência (1994)

29
Jul
09

As gaivotas

Nenhuma palavra acorre hoje para me ajudar a carregar com o dia. Contemplo longamente (ver é agora a minha única paixão) a ave que desenhaste no meu caderno, ferida em pleno voo – quem terá forças para impedi-la de morrer? Outras gaivotas passam quase rente à janela, vai chover. Troco este céu impassível pelas dunas de Fão, agora só na memória. Também aí as gaivotas anunciavam que a luz mudara de direcção, e algumas aproximavam-se tanto do meu rosto que eu chegava a recear que me bicassem os olhos. Elas vêm e vão, o céu está agora mais claro, já não as vejo. Talvez não caia mais que um dedalzinho de água, ou nem isso sequer.

28.2.86




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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