Arquivo de Abril, 2009

28
Abr
09

A Ilha

Tanta palavra para chegar a ti,
tanta palavra,
sem nenhuma alcançar
entre as ruínas
do delírio a ilha,
sempre mudando
de forma, de lugar, estremecida
chama, preguiçosa
vaga fugidia
do mar de Ulisses cor de vinho.
27
Abr
09

Da ignorância

A mão

que entregava à tua

os primeiros sinais do verão

já não sabe o caminho – é como se

em vez de aprender fosse cada vez mais

e mais ignorante. Ou ignorar

fosse todo o saber.

25
Abr
09

A Casais Monteiro, podendo servir de epitáfio

O que dói não é um álamo.

Não é a neve nem a raiz

da alegria apodrecendo nas colinas.

O que dói

 

não é sequer o brilho de um pulso

ter cessado,

e a música, que trazia

às vezes um suspiro, outras um barco.

 

O que dói é saber.

O que dói

é a pátria, que nos divide e mata

antes de se morrer.

 

Setembro, 1972

 

Neste 25 de Abril relembro pela mão de Eugénio todos aqueles que, como Casais Monteiro, não o puderam ser na sua pátria e que com essa manhã de Abril tanto sonharam.

 

Mais sobre Adolfo Casais Monteiro…

 

Adolfo Victor Casais Monteiro nasceu no Porto em 1908 e morreu em São Paulo em 1972. Depois da sua licenciatura, na Faculdade de Letras do Porto, em Ciências Históricas e Filosóficas, começa a ensinar no Porto em 1934 e casa-se com Alice Pereira Gomes, irmã de Soeiro Pereira Gomes. A sua criação literária é já nestes anos dominada por dois géneros: a poesia e o ensaio. No final da década de 1930 e na década seguinte foi demitido do ensino (1937) e preso sete vezes, vivendo uma vida profissional atribulada por motivos políticos, mantendo a sua actividade de poeta e crítico através de trabalhos de tradução e edição. Os anos da década de 1940 são particularmente férteis em termos poéticos: Sempre e sem Fim data de 1937, e na década seguinte, seguem-se-lhe Canto da nossa Agonia (1942), Noite Aberta aos Quatro Ventos (1943), Versos (1944, reunião dos três livros de poesia anteriores) e, com particular destaque, Europa (1946), longo poema lido por António Pedro aos microfones da BBC de Londres ainda durante a guerra (1945). Por fim, em 1949, outra colectânea poética, Simples Canções da Terra. Exila-se em 1954 no Brasil (onde ensinou em várias universidades, com uma breve passagem pelos EUA perto do fim da vida) por motivos políticos (proibição de ensinar) e por motivos pessoais (desejo de liberdade). No Brasil mantém a sua actividade poética, tendo sempre em vista a actividade artística e literária em Portugal (onde nunca voltou), como as dedicatórias dos poemas dos últimos livros deixam perceber. Depois de décadas sem que a Censura permitisse, sequer, a publicação do seu nome, em 1969 a Portugália Editora lança o volume Poesias Completas, marcando a recepção da sua Obra pela geração que fará o 25 de Abril. Antes disso, morreu, em 24 de Julho de 1972.

 

24
Abr
09

Estudos sobre Eugénio de Andrade

 

 

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Hoje escrevo para divulgar o novo livro de João de Mancelos, “O Marulhar de Versos Antigos – A Intertextualidade em Eugénio de Andrade”.

 

“Neste conjunto de ensaios e recensões, resultantes do seu trabalho de pós-doutoramento, João de Mancelos analisa a influência e a presença intertextual de vários escritores célebres na obra de Eugénio de Andrade. Lord Byron, John Keats, Percy Shelley, Walt Whitman, W. B. Yeats e Wallace Stevens são vozes que ecoam nos versos de um dos mais importantes poetas portugueses contemporâneos. Mancelos estuda ainda como a música, a pintura e outras artes encontraram uma nova vida na obra literária eugeniana. Desta pesquisa resulta uma visão original, que permite apreciar e compreender melhor as raízes e os temas do autor de As Mãos e os Frutos.”

 

23
Abr
09

A formiga

Sete palmos, sete metros,

anda a formiga por dia

(sete palmos a correr,

sete metros devagar),

só para lamber o mel

que lentamente escorria

quer da boca quer do pão,

quer dos dedos do Miguel.

 

Eugénio de Andrade por Graça Martins

Eugénio de Andrade por Graça Martins

22
Abr
09

Com essa nuvem

Para que estrela estás crescendo,

filho, para que estrela matutina?

Diz-me, diz-me ao ouvido,

se é tempo ainda,

eu e essa nuvem, essa nuvem alta,

de irmos contigo.

20
Abr
09

Aos jacarandás de Lisboa

São eles que anunciam o verão.

Não sei doutra glória, doutro

paraíso: à sua entrada os jacarandás

estão em flor, um de cada lado.

E um sorriso, tranquila morada,

à minha espera.

O espaço a toda a roda

multiplica os seus espelhos, abre

varandas para o mar.

É como nos sonhos mais pueris:

posso voar quase rente

às nuvens altas – irmão dos pássaros –,

perder-me no ar.

18
Abr
09

Encontro no inverno com António Lobo Antunes

Com as aves aprende-se a morrer.

Também o frio de Janeiro

enredado nos ramos não ensina outra coisa

 – dizias tu, olhando

as palmeiras correr para a luz.

Que chegava ao fim.

E com ela as palavras.

Procurei os teus olhos onde o azul

inocente se refugiara.

Na infância, o coração do linho

afastava os animais de sombrra.

Amanhã já não serei eu a ver-te

subir aos choupos brancos.

O resplendor das mãos imperecível.

 

18.01.2000

16
Abr
09

Da memória

Branco, branco e orvalhado,

o tempo das crianças e dos álamos.

14
Abr
09

Outro exemplo: Carlos de Oliveira

Os rumores vinham de costas, a rua entrava pela casa, apesar de tão alta. Desviava então a vista fatigada do papel, a palavra exacta era lenta a chegar, quando chegava. O trabalho de horas acabara por reduzir-se a três ou quatro linhas, ainda por cima Cesário insinuara-se no seu apuro. Aproximou-se da janela, a luz era ainda amarga naquele fim de Março. O rio lá ao fundo ia frio, apesar disso as águas chamavam-no. É a música inominável da poesia, pensou, um dia terei de responder àquele apelo. Voltou ao papel, não podia perder o resto da manhã. O que se expõe na palavra é um corpo mortal, mas são essas interrogações que resistem à morte. Amarfanhou a folha, atirou-a fora, exasperado. Pegou na bengala, desceu à rua. Março ia frio, não há dúvida. (16.5.85)




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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