Arquivo de Dezembro, 2008

23
Dez
08

A pequena pátria

A pequena pátria; a do pão;

a da água;

a da ternura, tanta vez

envergonhada;

a de nenhum orgulho nem humildade;

a que não cercava de muros

o jardim nem roubava

aos olhos o desajeitado voo

das cegonhas; a do cheiro quente

e acidulado da urina

dos cavalos; a dos amieiros

à sombra onde aprendi

que o sexo se compartilhava;

a pequena pátria da alma e do estrume

suculento morno mole;

a da flor múltipla e tão amada

do girassol.

 

Estou de partida para outros mares, para reforçar o corpo e o espírito e, por isso, o Sal da Língua cristaliza durante as próximas três semanas. Um óptimo Natal para todos.

21
Dez
08

Deixa que seja uma criança

Deixa que seja uma criança

a inclinar a tarde.

Dizem que é verão: não acredites.

O verão tem os pés iluminados pela lua,

 

o verão tem os nomes todos do mar,

não é o deserto

da cama aberta ao frio,

o prazer imitando a neve.

 

O que se vê daqui não é a dança

da claridade com o trigo,

o rio onde os cavalos bebem

a tarde a chegar ao fim.

 

Deixa que seja uma criança.

17
Dez
08

O lugar da casa

Uma casa que nem fosse um areal

deserto; que nem casa fosse;

só um lugar

onde o lume foi aceso, e à sua roda

se sentou a alegria; e aqueceu

as mãos; e partiu porque tinha

um destino; coisa simples

e pouca, mas destino:

crescer como árvore,

ao vento, ao rigor da invernia,

e certa manhã sentir os passos

de abril,

ou, quem sabe?, a floração

dos ramos, que pareciam

secos, e de novo estremecem

com o repentino canto da cotovia.

15
Dez
08

Que fizeste das palavras?

Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

10
Dez
08

Cantus firmus

O vento sacode as palmeiras.

Não tardará a chuva.

Tem chovido tanto nos meus versos

que a chuva se tornou insuportável.

 

Apesar disso, os pássaros cantam.

São os melros de Messiaen.

Mesmo envelhecido

também o coração canta.

 

Acode-me aos lábios um nome.

É de noite: quando

a música cessa, o silêncio

como estrela brilha na boca.

 

Tenho pena das palmeiras

à chuva noite e dia, ao vento, ao sol.

Frente ao peso do mundo

são orgulhosamente lugar de amor.

08
Dez
08

Um nome

Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,

pela luz

onde me deito;

di-lo-ei pelo ódio, pelo amor

com que toquei as pedras nuas,

por uns passos verdes de ternura,

pelas adelfas,

quando as adelfas nestas ruas

podem saber a morte;

pelo mar

azul,

azul-cantábrico, azul-bilbau,

quando amanhece;

di-lo-ei pelo sangue

violado

e limpo e inocente;

por uma árvore,

uma só árvore, di-lo-ei:

Guernica!

07
Dez
08

Pastoral

A terra inocente

abre-se ao ardor

de oiro de uma flauta

– será que o pastor

ou a primavera

desperta e se exalta?

 

 

Notícias da Fundação…

 

No próximo dia 13 de Dezembro, sábado, pelas 18h30, no auditório da Fundação Eugénio de Andrade, será feita a sessão de lançamento do livro Não é Preciso Gritar, de Eduarda Chiote, editado pela Editora Campo das Letras. A apresentação da obra estará a cargo de Arnaldo Saraiva.

A entrada é livre.

 

05
Dez
08

Walt Whitman e os pássaros

Ao acordar lembrei-me de Peter Doyle. Deviam ser seis horas, na austrália em frente um pássaro cantava. Não vou jurar que cantasse em inglês, só os pássaros de Virgínia Woolf têm privilégios assim, mas o júbilo do meu pisco trouxe-me à memória a cotovia dos prados americanos e o rosto friorento do jovem irlandês, que naquele inverno Walt Whitman amou, sentado ao fundo da taberna, esfregando as mãos, junto ao calor do fogão. Abri a janela, na escassa claridade que se aproximava procurei, em vão, a delícia sem mácula que me despertara. Mas de repente, uma, duas, três vezes, ouviram-se uns trinadinhos molhados, a indicar-me um sopro de penas que mal se distinguia da folhagem. Então, invocando antiquíssimas metáforas do canto, peguei no livro venerando que tinha à mão e, de estrofe em estrofe, fui abrindo as represas às águas do ser, como quem se prepara para voar.

03
Dez
08

As palavras interditas

Os navios existem, e existe o teu rosto

encostado ao rosto dos navios.

Sem nenhum destino flutuam nas cidades,

partem no vento, regressam nos rios.

 

Na areia branca, onde o tempo começa,

uma criança passa de costas para o mar.

Anoitece. Não há dúvida, anoitece.

É preciso partir. É preciso ficar.

 

Os hospitais cobrem-se de cinza.

Ondas de sombra quebram nas esquinas.

Amo-te… E entram pela janela

as primeiras luzes das colinas.

 

As palavras que te envio são interditas

até, meu amor, pelo halo das searas;

se alguma regressasse, nem já reconhecia

o teu nome nas suas curvas claras.

 

Dói-me esta água, este ar que se respira,

dói-me esta solidão de pedra escura,

estas mãos nocturnas onde aperto

os meus dias quebrados na cintura.

 

E a noite cresce apaixonadamente.

Nas suas margens nuas, desoladas,

cada homem tem apenas para dar

um horizonte de cidades bombardeadas.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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