Eugénio de Andrade deu o corpo à terra há precisamente 6 anos. Outro corpo volveu à terra no mesmo dia do mesmo ano, o do escritor Manuel Tiago/Álvaro Cunhal.
Outro poeta português viria a sucumbir nesse mesmo dia 13 – Al Berto – ao passo que outro, décadas antes, havia de nascer eterno – Fernando Pessoa.
Hoje reunem-se todos na companhia de Eugénio.
Descer pela manhã até à folha, de Eugénio de Andrade
Descer pela manhã até à folha
dos álamos,
ser irmão duma estrela, ou filho,
ou talvez pai um dia doutra luz de seda,
ignorar as águas do meu nome,
as secretas bodas do olhar,
os cardos e os lábios da sede,
não saber
como se morre de tanto ser hesitação,
de tanto desejar
ser chama, arder assim de estrela
em estrela,
até ao fim.
In: Eugénio de Andrade. Branco no Branco.Editora Limiar
Incêndio, de Al Berto
se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha – não te assustes
são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te
diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo – diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas – com eles no chão
In: Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª edição
Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima, de Álvaro de Campos
Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima,
Começam chegando os primitivos da espera,
Já ao longe o paquete de África se avoluma e esclarece.
Vim aqui para não esperar ninguém,
Para ver os outros esperar,
Para ser os outros todos a esperar,
Para ser a esperança de todos os outros.
Trago um grande cansaço de ser tanta coisa.
Chegam osretardatários do princípio,
E de repente impaciento-me de esperar, de existir, de ser,
Vou-me embora brusco e notável ao porteiro que me fita muito mas rapidamente.
Regresso à cidade como à liberdade.
Vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir.
In: Fernando Pessoa. Livro de Viagem. Guerra & Paz
Excerto da novela Cinco Dias, Cinco Noites, de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal)
(…) Longe de veredas e povoados, a serra ondulava pedregosa e nua. Só aqui e além, ao fundo das encostas ou por detrás de cabeços, repousavam manchas macias de terra lavrada. Donde e quem vinha lavrá-la parecia um mistério em sítio tão desolado e ermo. Toda a tarde caminhavam, o Lambaça adiante, André atrás. Nem uma só vez avistaram um ser humano. Não fora o sol derramando luz no ar e nas coisas, não fora o ar límpido e leve, aquele deserto e aquele silêncio seriam intoleravelmente opressivos. Assim, a serra abria-se à intimidade, numa carícia tranquila e confiante. Mas, quando o sol começou a aproximar-se do horizonte, e os vales se diluíram em penumbras, e os cabeços e rebolos estenderam as sombras, e o ar começou a pesar de humidade e frio, então, sobranceira, a serra ganhou subitamente nova grandeza, como que olhando os intrusos com hostilidade. (…)
In: Manuel Tiago. Cinco Dias, Cinco Noites. Edições Avante