Archive for the 'Branco no Branco (1984)' Category

05
Mar
12

Não, não é ainda a inquieta

Não, não é ainda a inquieta

luz de março

à proa de um sorriso,

nem a gloriosa ascensão do trigo,

 

a seda de uma andorinha roçando

o ombro nu,

o pequeno e solitário rio adormecido

na garganta;

 

não, nem o cheiro acidulado e bom

do corpo, depois do amor,

pelas ruas a caminho do mar,

ou o despenhado silêncio

 

da pequena praça,

como um barco, o sorriso à proa;

 

não, é só um olhar.

 

In: Branco no Branco (1984)

 

 

13
Jun
11

6º Aniversário da morte de Eugénio

Eugénio de Andrade deu o corpo à terra há precisamente 6 anos. Outro corpo volveu à terra no mesmo dia do mesmo ano, o do escritor Manuel Tiago/Álvaro Cunhal.

Outro poeta português viria a sucumbir nesse mesmo dia 13 – Al Berto – ao passo que outro, décadas antes, havia de nascer eterno – Fernando Pessoa.

Hoje reunem-se todos na companhia de Eugénio.

 

Descer pela manhã até à folha, de Eugénio de Andrade

Descer pela manhã até à folha

dos álamos,

ser irmão duma estrela, ou filho,

ou talvez pai um dia doutra luz de seda,

 

ignorar as águas do meu nome,

as secretas bodas do olhar,

os cardos e os lábios da sede,

não saber

 

como se morre de tanto ser hesitação,

de tanto desejar

ser chama, arder assim de estrela

em estrela,

 

até ao fim.

 

In: Eugénio de Andrade. Branco no Branco.Editora Limiar

 
 

Incêndio, de Al Berto

se conseguires entrar em casa e

alguém estiver em fogo na tua cama

e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho

e do tecto cair uma chuva brilhante

contínua e miudinha – não te assustes

 

são os teus antepassados que por um momento

se levantaram da inércia dos séculos e vêm

visitar-te

 

diz-lhes que vives junto ao mar onde

zarpam navios carregados com medos

do fim do mundo – diz-lhes que se consumiu

a morada de uma vida inteira e pede-lhes

para murmurarem uma última canção para os olhos

e adormece sem lágrimas – com eles no chão

 

In: Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª edição

 
 

Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima, de Álvaro de Campos

Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima,

Começam chegando os primitivos da espera,

Já ao longe o paquete de África se avoluma e esclarece.

Vim aqui para não esperar ninguém,

Para ver os outros esperar,

Para ser os outros todos a esperar,

Para ser a esperança de todos os outros.

 

Trago um grande cansaço de ser tanta coisa.

Chegam osretardatários do princípio,

E de repente impaciento-me de esperar, de existir, de ser,

Vou-me embora brusco e notável ao porteiro que me fita muito mas rapidamente.

 

Regresso à cidade como à liberdade.

 

Vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir.

 

In: Fernando Pessoa. Livro de Viagem. Guerra & Paz

 
 

Excerto da novela Cinco Dias, Cinco Noites, de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal)

(…) Longe de veredas e povoados, a serra ondulava pedregosa e nua. Só aqui e além, ao fundo das encostas ou por detrás de cabeços, repousavam manchas macias de terra lavrada. Donde e quem vinha lavrá-la parecia um mistério em sítio tão desolado e ermo. Toda a tarde caminhavam, o Lambaça adiante, André atrás. Nem uma só vez avistaram um ser humano. Não fora o sol derramando luz no ar e nas coisas, não fora o ar límpido e leve, aquele deserto e aquele silêncio seriam intoleravelmente opressivos. Assim, a serra abria-se à intimidade, numa carícia tranquila e confiante. Mas, quando o sol começou a aproximar-se do horizonte, e os vales se diluíram em penumbras, e os cabeços e rebolos estenderam as sombras, e o ar começou a pesar de humidade e frio, então, sobranceira, a serra ganhou subitamente nova grandeza, como que olhando os intrusos com hostilidade. (…)

 

In: Manuel Tiago. Cinco Dias, Cinco Noites. Edições Avante 

21
Maio
10

Estou contente, não devo nada à vida

Estou contente, não devo nada à vida,

e a vida deve-me apenas

dez réis de mel coado.

Estamos quites, assim

o corpo já pode descansar: dia

após dia lavrou, semeou,

também colheu, a até

alguma coisa dissipou, o pobre,

pobríssimo animal,

agora de testículos aposentados.

Um dia destes vou-me estender

debaixo da figueira, aquela

que vi exasperada e só, há muitos anos:

pertenço à mesma raça.

28
Dez
09

Julguei que não voltaria a falar

Julguei que não voltaria a falar
desse verão onde o sol se escondia
entre a nudez
dos rapazes e a água feliz.

Imagens que já não doem
– risos, corridas, a brancura dos dentes,
ou a matutina estrela
ardendo no centro da nossa carne –

chegaram com a neve, tão rara
nestas paragens,
e como pousa a poeira,
sentaram-se ao lume vagarosas.

Aí estiveram, escutando o que traz
o vento. Até anoitecer.
20
Out
09

Um amigo é às vezes o deserto

Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre
 
um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;
 
é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
 
O real é a palavra.
27
Ago
09

A chuva cai na poeira como no poema

A chuva cai na poeira como no poema
de Li Bai. No sul
os dias têm olhos grandes
e redondos; no sul o trigo ondula,
 
as suas crinas dançam no vento,
são a bandeira
desfraldada da minha embarcação;
 
no sul a terra cheira a linho branco,
a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água,
caindo na poeira, leve, acesa,
 
Como no poema.
04
Maio
09

Regressar ao corpo, entrar nele

Regressar ao corpo, entrar nele
sem receio da insurreição da carne.
Nenhuma boca é fria,
mesmo quando atravessou
o inverno. Uma boca é imortal
sobre outra boca: diamante
aceso, estrela aberta
quando a luz irrompe, invade
ombros, peitos, coxas, nádegas, falos.
Despertos, puros no seu pulsar,
aí os tens: esplendorosos,
duros.
28
Mar
09

Sobre a mesa a fruta arde

Sobre a mesa a fruta arde: pêras,

laranjas, maçãs, pressentem

a íntima brancura

dos dentes, o desejo represado,

 

o espesso vinho de vozes antigas;

arde a melancolia ao inventar

outra cidade,

outro país, outros céus onde lançar

 

os olhos e o riso: deita-te comigo,

trago-te do mar

a crespa luz da espuma,

nos flancos este amor retido.

24
Fev
09

Faz uma chave, mesmo pequena

Faz uma chave, mesmo pequena,

entra na casa.

Consente na doçura, tem dó

da matéria dos sonhos e das aves.

 

Invoca o fogo, a claridade, a música

dos flancos.

Não digas pedra, diz janela.

Não sejas como a sombra.

 

Diz homem, diz criança, diz estrela.

Repete as sílabas

onde a luz é feliz e se demora.

 

Volta a dizer: homem, mulher, criança.

Onde a beleza é mais nova.

12
Nov
08

Às vezes entra-se em casa com o outono

Às vezes entra-se em casa com o outono

preso por um fio,

dorme-se então melhor,

mesmo o silêncio acabou por se calar.

 

Talvez pela noite fora ouça cantar o galo,

e um rapazito suba as escadas

com um cravo

e notícias de minha mãe.

 

Nunca fui tão amargo, digo-lhe então,

nunca à minha sombra a luz

morreu tão jovem

e tão turva.

 

Parece que vai nevar.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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