Neste “O lugar dos amigos” é dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio – os seus colegas e amigos.
(texto de Jorge Pinheiro publicado na revista de poesia “Relâmpago”, n.º 15, Outubro de 2004, dedicado a Eugénio de Andrade)
O meu relacionamento com Eugénio de Andrade tem dois tempos completamente distintos: o primeiro, nos anos 60, quando, após o almoço, o grupo que gravitava em torno de Belas-Artes se reunia no Café de São Lázaro. Aí, a nossa troca de ideias não ultrapassava o que a cada um cabia na rodada de argumentos que circulavam em torno da mesa. Para além deste ritual do café, só acidentalmente nos encontrávamos em casa de algum amigo comum, e as conversas arrastavam-se na modorra emoliente, como é frequente nos serões rotineiros.
Entretanto, em 1976, transferi-me de Belas-Artes do Porto para Lisboa e a parte da semana em que estava no Porto deixava-me pouco tempo livre; acabou, assim, a tertúlia no Café São Lázaro, restando-nos, mas cada vez mais raros, os tais serões.
O segundo tempo deve-se a um amigo de ambos, o incansável José Cruz Santos – editor de sempre da obra de Eugénio de Andrade, seu devotado admirador e amigo – que, sabendo-me, também eu, sensível à sua poesia, me desafiou a “fazermos qualquer coisa” de parceria com o Eugénio.
A ideia foi germinando até se concretizar: seria um álbum, teria 15 poemas e outros tantos desenhos. Uma vez assente este ponto de partida, logo que nos foi possível reunimo-nos os três, a meu pedido, na sua casa da Foz.
Confesso que o meu propósito neste encontro, tão formalmente combinado, não era tanto afinar agulhas em relação ao álbum mas, principalmente, perscrutar algo vindo do próprio autor, cuja poesia eu conhecia bem. Porém, sempre me recusei a aceitá-la apenas espartilhada no estereótipo do “Poeta do sol, da cal, do corpo apolíneo, da linguagem simples”, etc., etc. Não sei se a obra do artista é apenas o resultado da reflexão do seu fruidor, mas, seja como for, decididamente, não era por este caminho que eu queria seguir para chegar aos desenhos, porque a tão apregoada simplicidade de linguagem dos seus poemas recorda-me, frequentemente, a aparente simplicidade
musical dos “Lieder” de Schubert, tão facilmente trauteáveis, mas onde se esconde, igualmente, uma sublinear e enorme complexidade.
Em suma, não pretendendo nenhum de nós a ilustração do que quer que fosse, mas, talvez, a construção de um discurso tão paralelo quanto possível à substância do conteúdo da poesia do autor, atrevi-me, em dada altura da conversa, a perguntar-lhe quais eram os seus “fantasmas”. Respondeu-me assim: “São o pastor, a criança e a mulher de negro.” Referia-se, obviamente, às camponesas da sua terra.
Perdoe-se-me a expressão: “fui buscar lã e voltei tosquiado”! Cada autor só sabe fazer, honestamente, aquilo de que tem necessidade e eu não estava, naquele período, necessitado de nenhum destes “fantasmas”.
Encurtando razões: não consegui, com grande mágoa minha e depois de imensas tentativas ao longo de meses, fazer um único desenho para o álbum. Acabei por fazer um retrato, embora não seja uma forma de expressão que tenha por hábito cultivar, mas como o Eugénio de Andrade tem uma “máscara” muito marcada… saiu. Enviei-lho acompanhado de uma carta onde tentei explicar-lhe as razões do meu insucesso em relação ao álbum.
Entretanto, no Natal, pediu-me que lhe desenhasse, para um cartão de cumprimentos aos amigos, um pássaro. Enviei-lhe um aviário com “croquis” de pássaros.
E passaram muitos meses.
Certo dia, quando regressei a casa, disseram-me que tinha telefonado, desejava falar comigo e estava muito doente! Infelizmente, eu já tinha conhecimento do seu estado de saúde. Telefonei-lhe de imediato porque o sabia já em casa e, então, tive o imenso privilégio de ouvir o Eugénio de Andrade, com uma voz absolutamente firme, ler-me, com a sua proverbial qualidade de leitura, aquele que, se não erro, terá sido, até hoje, o seu último poema:
“Também ele vai morrer, o verão.
Do verde ao vermelho
as maçãs ardem sobre a mesa.
Ardem de uma luz sua, mais madura.
E servem-me de espelho”
Ao longo da leitura, o desenho que me pedia agora, para o Natal, o Natal que só viria passado quase meio ano, ia-se-me construindo nos olhos.
A referência à morte, expressa no poema, em nada alterava, a meu ver, a imagem revivificadora da dinâmica de complementaridade cromática da alacridade do vermelho e do verde das maçãs, (que, afinal, lhe serviam de espelho).
“Tinha”, julgava eu, o desenho para o cartão!
Porém, no fim da leitura do poema, fez uma pausa longa e, num tom de voz baixo e pausado, ditou-me:
Hospital de Santo António, 21 de Julho de 2002.
Desabou-se-me o mundo!
Obviamente, eu sabia do seu internamento no Hospital de Santo António, da sua falta de saúde e, portanto, não era esse facto que iria condicionar, novamente, a minha capacidade de, a seu pedido, fazer um desenho.
Se da primeira vez os seus “fantasmas” não eram, naquele período da minha vida, suficientemente estimulantes para eu criar algo, agora, e subitamente, a conotação que teve – e sempre terá – a palavra “hospital” estilhaçou, em segundos, a imagem que se me foi construindo ao longo da leitura.
Tudo isto parece ridículo, mas a verdade é que, não sendo eu suficientemente pós-moderno para trabalhar à base de estratégias, mas, talvez romanticamente, apenas motivado por “necessidades interiores”, suei as estopinhas para conseguir acabar por fazer um simples e modestíssimo desenho para um cartão de cumprimentos, porque o desenho, a meu ver, contrariava o poema naquilo que eu lia como essencial.
Quando o enviei, coloquei-lhe o meu ponto de vista, abertamente. Não sei se pela gentileza que sempre tem tido para comigo, mandou imprimir o desenho e disse-me achar tudo bem.
Recentemente, porém, de novo José Cruz Santos decidiu oferecer “Uma prenda para Eugénio com algumas tulipas”, com a colaboração de muita gente das letras e das artes plásticas. Quando tive que escolher o poema que acompanharia mais este desenho, não hesitei um segundo: seria o “Poema à mãe” e, ao construir a imagem, julgo ter finalmente compreendido, pelo menos, um dos seus tais “fantasmas”: o fantasma primordial que me faz ler, sublinearmente, a nostalgia schubertiana?
Ainda não voltei a vê-lo.
Mas a sua poesia está sempre na minha companhia.
6 de Setembro de 2004