Posts Tagged ‘tempo

21
Abr
12

Elegia e destruição

Desse tempo em que se permanece criança

durante milhares de anos,

trouxe comigo um cheiro a resina;

trouxe também os juncos vermelhos

que ladeiam a orla do silêncio,

neste quarto, agora habitado pelo vento;

trouxe ainda um olhar húmido

onde os pássaros perpetuam o céu.

 

Dificilmente esqueço a rua onde encontrei

os teus olhos imensos, fascinados

pelo fulgor secreto das espadas,

a casa onde te contei, de mãos trémulas,

a parábola do pão e do vinho,

dando a cada palavra um rosto novo.

 

A cidade onde te amei foi decepada

e não posso abolir as sentinelas do medo.

Mas também não posso deixar de te querer

com beijos e relâmpagos,

com sonhos que tropeçam nas paredes

e se alimentam de terror e de alegria,

enquanto o tempo persiste em soluçar.

 

Que me quereis verdes sombras da lua

na minha cama onde adormece o frio?

Aqui estou, mais alto do que o trigo,

sangrando nas pétalas do dia

e sem receio de que aos nossos gritos

ainda chamem brisa.

 

In: As Palavras Interditas (1951)

07
Dez
11

O sacríficio

Não gostaria de falar desse primeiro

encontro com as dificuldades do corpo.

Ou não seriam do corpo? Fora

do corpo haverá alguma coisa?

Foi há tantos anos, que espanta

que dure ainda na memória.

A extrema juventude guarda melhor

o tempo. Idade da flor, assim

lhe chamam. Idade de ser homem,

dizem também. O que é então

ser homem? Ou ser mulher?, se poderá

perguntar. Aqui, era ser homem: idade

de ir às putas. Entrava-se na sala

envergonhado, depois de se bater

à porta. Elas lá estavam; num salto

uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,

exclamou, olhando o cordeiro

do sacrifício. Ao fim, com dez escudos

pagavas o seres homem.

Não era caro, provares a ti mesmo

que pertencias ao rebanho.


In: Os lugares do lume (1998)

26
Out
11

Com o tempo aproximar-se-ão os rios

Com o tempo aproximar-se-ão os rios

e os montes, com o tempo

acabará por te vir comer à mão

e fazer ninho na tua cama

o silêncio


 

In: O Peso da Sombra (1982)

18
Nov
09

Prato de figos

Também a poesia é filha
da necessidade –
esta que me chega um pouco já
fora do tempo,
deixou de ser sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida a húmida
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que no inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.
20
Maio
09

Tempo em que se morre

Agora é verão, eu sei.
Tempo de facas, tempo
em que se perdem os anéis
as cobras à míngua de água.
Tempo em que se morre
de tanto olhar os barcos.
 
É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.
 
Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.
 
Pousas as mãos sobre o meu rosto,
e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.
 
E devagar, sem te voltares,
pelos espelhos entras na noite.
14
Maio
09

Surdo, subterrâneo rio

Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
 
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
16
Abr
09

Da memória

Branco, branco e orvalhado,

o tempo das crianças e dos álamos.

07
Abr
09

Canção

Hoje venho dizer-te que nevou

no rosto familiar que te esperava.

Não é nada, meu amor, foi um pássaro,

a casca do tempo que caiu,

uma lágrima, um barco, uma palavra.

 

Foi apenas mais um dia que passou

entre arcos e arcos de solidão;

a curva dos teus olhos que se fechou,

uma gota de orvalho, uma só gota,

secretamente morta na tua mão.

15
Fev
09

Sílaba a sílaba

Eis sílaba a sílaba de uma cor perversa

o tempo quase nu para levar à boca.

 

Como se fora minha a respiração do trevo

alcanço a linha de água.

 

Habito onde o ar dói

                        as próprias mãos acesas.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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