Arquivo de Agosto, 2008

29
Ago
08

Introdução ao canto

Ergue-te de mim,

substância pura do meu canto.

Luz terrestre, fragância.

Ergue-te, jasmim.

 

Ergue-te, e aquece

a cal e a pedra,

as mãos e a alma.

Inunda, reina, amanhece.

 

Ao menos tu sê ave,

primavera excessiva.

Ergue-te de mim:

canta, delira, arde.

26
Ago
08

Espadas da melancolia

Um corpo

para estender a náufragos – o teu corpo.

 

Um rasto de cadelas aluadas,

um charco de maçãs apodrecidas

ou longas cabeleiras apagadas.

 

Não dizias palavras, ou só dizias

aquelas onde o rosto se escondia.

 

Palavras onde o sangue não abria

a corola de fogo à madrugada.

 

O azul não canta, a água morre

na mais secreta boca do teu corpo.

 

Aqui não brilha a terra, a luz é fria,

aqui o horizonte não respira.

 

Não havia vento: só medo e cobardia.

25
Ago
08

Só as tuas mãos trazem os frutos

Só as tuas mãos trazem os frutos.

Só elas despem a mágoa

destes olhos, e dos choupos,

carregados de sombra e rasos de água.

 

Só elas são

estrelas penduradas nos meus dedos.

– Ó mãos da minha alma,

flores abertas aos meus segredos.

22
Ago
08

Juventude

Sim, eu conheço, eu amo ainda

esse rumor abrindo, luz molhada,

rosa branca. Não, não é solidão,

nem frio, nem boca aprisionada.

Não é pedra nem espessura.

É juventude. Juventude ou claridade.

É um azul puríssimo, propagado,

isento de peso e crueldade.

21
Ago
08

Os olhos rasos de água

Cansado de ser homem o dia inteiro

chego à noite com os olhos rasos de água.

Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,

entrar dentro de ti como num bosque.

 

É a hora de fazer milagres:

posso ressuscitar os mortos e trazê-los

a este quarto branco e despovoado,

onde entro sempre pela primeira vez,

para falarmos das grandes searas de trigo

afogadas na luz do amanhecer.

 

Posso prometer uma viagem ao paraíso

a quem se estender ao pé de mim,

ou deixar uma lágrima nos meus olhos

ser a nostalgia das areias.

 

É a hora de adormecer na tua boca,

como um marinheiro num barco naufragado,

o vento na margem das espigas.

20
Ago
08

Não ouças essas vozes que não param

Não ouças essas vozes que não param

de crescer a caminho do inverno,

os lugares onde o corpo de erro

em erro abdica de ser corpo

são mortais, não ouças essas vozes

onde o sol apodrece, nunca mais.

19
Ago
08

O mar. O mar novamente à minha porta

O mar. O mar novamente à minha porta.

Vi-o pela primeira vez nos olhos

de minha mãe, onda após onda,

perfeito e calmo, depois,

 

contra as falésias, já sem bridas.

Com ele nos braços, quanta,

quanta noite dormira,

ou ficara acordado ouvindo

 

seu coração de vidro bater no escuro,

até a estrela do pastor

atravessar a noite talhada a pique

sobre o meu peito.

 

Este mar, que de tão longe me chama,

que levou na ressaca, além dos meus navios?

18
Ago
08

No fim do verão

No fim do verão as crianças voltam,

correm no molhe, correm no vento.

Tive medo que não voltassem.

Porque as crianças às vezes não

regressam. Não se sabe porquê

mas também elas

morrem.

Elas, frutos solares:

laranjas romãs

dióspiros. Sumarentas

no outono. A que vive dentro de mim

também voltou; continua a correr

nos meus dias. Sinto os seus olhos

rirem; seus olhos

pequenos brilhar como pregos

cromados. Sinto os seus dedos

cantar como a chuva.

A criança voltou. Corre no vento.

02
Ago
08

Canção escrita nas areias de Laga

No teu ombro respiro.

Belos são os navios,

altos, estreitos.

Feliz, o teu rosto no meu.

Que luz sobre o teu peito!

 

No teu ombro respiro.

Belas são as areias,

fulvas de verão.

Feliz, o meu rosto no teu.

Oh tão azul o mar na tua mão!

 

*****Durante duas semanas vou viver para o mar. O “Sal da Língua” entra, finalmente, no Verão!*****

 

 

 




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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