Posts Tagged ‘desejo

21
Maio
15

Escrita da terra

1.

Sê tu a palavra,

branca rosa brava.

2.

Só o desejo é matinal.

Poupar o coração

é permitir à morte

coroar-se de alegria.

4.

Morre

de ter ousado

na água amar o fogo.

Beber-te a sede e partir

– eu, que sou de tão longe.

Da chama à espada

o caminho é solitário.

7.

Que me quereis,

se me não dais

o que é tão meu?

In: Ostinato Rigore (1964)

17
Maio
11

Frases

No verão inocente dos joelhos

 

à entrada da noite

como se a luz doesse

 

entre o desejo

e o espasmo lentíssimo relâmpago

 

a mão.

 

In: Véspera da Água (1973)

11
Abr
10

É um dizer

Estende um pouco mais a mão

recolhe um a um os sinais do desejo

fogo de abelhas o sexo

espera a insurreição da cal

a espessa ondulação do vento

é sobre um corpo a própria exaltação

morrer nos flancos do amor é um dizer

repara como brilham os limoeiros

28
Ago
09

Obscuro Domínio

Amar-te assim desvelado
entre barro fresco e ardor.
Sorver entre lábios fendidos
o ardor da luz orvalhada.
 
Deslizar pela vertente
da garganta, ser música
onde o silêncio flui
e se concentra.
 
Irreprimível queimadura
ou vertigem desdobrada
beijo a beijo,
brancura dilacerada.
 
Penetrar na doçura da areia
ou do lume,
na luz queimada
da pupila mais azul,
 
no oiro anoitecido
entre pétalas cerradas,
no alto e navegável
golfo do desejo,
 
onde o furor habita
crispado de agulhas,
onde faça sangrar
as tuas águas nuas.
07
Jun
09

Eros Thanatos

1
Ó pureza apaixonadamente minha:
terra toda nas minhas mãos acesa.
 
2
O que sei de ti foi só o vento
a passar nos mastros do verão.
 
3
Um corpo apenas, barco ou rosa,
rumoroso de abelhas ou de espuma.
 
4
Entre lábios e lábios não sabia
se cantava ou nevava ou ardia.
 
5
Amo como as espadas brilham
no ardor indizível do dia.
 
6
Seria a morte esta carícia
onde o desejo era só brisa?
13
Maio
09

De que país regressas?

De que país regressas?
De que mar ou regaço
onde o desejo respira devagar?
Fala, diz ainda a palavra
que faça do silêncio a casa
ou erga a coroa
do lume à altura do olhar.
07
Maio
09

Dai-me um nome

Dai-me um nome, um só nome
para tudo quanto voa:
cardo pedra romã.
 
Um só nome para o desejo
ser na manhã corola
de cal, cotovia,
 
chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.
 
Um só nome para que tudo,
rosa excremento mar
possa entrar numa canção.
28
Mar
09

Sobre a mesa a fruta arde

Sobre a mesa a fruta arde: pêras,

laranjas, maçãs, pressentem

a íntima brancura

dos dentes, o desejo represado,

 

o espesso vinho de vozes antigas;

arde a melancolia ao inventar

outra cidade,

outro país, outros céus onde lançar

 

os olhos e o riso: deita-te comigo,

trago-te do mar

a crespa luz da espuma,

nos flancos este amor retido.

06
Mar
09

Apenas um corpo

Respira. Um corpo horizontal,

tangível, respira.

Um corpo nu, divino,

respira, ondula, infatigável.

 

Amorosamente toco o que resta dos deuses.

As mãos seguem a inclinação

do peito e tremem,

pesadas de desejo.

 

Um rio interior aguarda.

Aguarda um relâmpago,

um raio de sol,

outro corpo.

 

Se encosto o ouvido à sua nudez,

uma música sobe,

ergue-se do sangue,

prolonga outra música.

 

Um novo corpo nasce,

nasce dessa música que não cessa,

desse bosque rumoroso de luz,

debaixo do meu corpo desvelado.

22
Fev
09

Eu ia com a noite pelas ruas

Eu ia com a noite pelas ruas

descuidadas que levam ao teu corpo.

Não sei que vozes se cruzaram

com a manhã de Junho dos meus olhos,

mas sempre vozes ou a sombra delas

cortaram os passos ao desejo.

Perdi-me em nevoeiros que de súbito

sobre a cidade caíram, ou em mim.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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