Posts Tagged ‘amor

09
Mar
12

Deste modo ou de qualquer outro

A doçura da erva

alta

como cantar ao crepúsculo,

 

deste modo ou de qualquer outro,

cego

de procurar nos flancos

os vestígios do lume,

 

deixa-me dizer: quando a pedra

do verão era água

na tua boca

o meu nome era um barco,

 

sobre os ombros a

noite nua

no coração o rouxinol

da bruma,

 

éramos nós meu amor éramos nós,

ninguém nos via,

 

essa música

 

onde a terra respira.

 

In: Véspera da Água (1973)

20
Out
11

Província

Meu casto

e puro amor provinciano,

não percas tempo

acendendo velas

no teu oratório:

nenhum santo

nem eu

estamos na disposição

de fazer o milagre

do teu casamento.


 

In: Primeiros Poemas (1977)

16
Mar
11

O azul, o azul rouco, o azul

O azul, o azul rouco, o azul

sem cor, luz gémea da sede.

Acerca deste rigor

tenho uma palavra a dizer,

uma sílaba a salvar

desta aridez, asa

ferida, o olhar arrastado

pela pedra

calcinada, húmido

ainda de ter pousado

à sombra de um nome,

o teu,

amor do mundo, amor de nada.

In: Contra a Obscuridade (1988)

05
Set
10

O pequeno persa

É um pequeno persa

azul o gato deste poema.

Como qualquer outro, o meu

amor por esta alminha é materno:

uma carícia minha lambe-lhe o pêlo,

outra põe-lhe o sol entre as patas

ou uma flor à janela.

Com garras e dentes e obstinação

transforma em festa a minha vida.

Quer-se dizer, o que me resta dela.

 

In: O Outro Nome da Terra (1988)

27
Jul
10

Dunas

É o mar do deserto, ondulação

sem fim das dunas,

onde dormir, onde estender o corpo

sobre outro corpo, o peito vasto,

as pernas finas, longas,

as nádegas rijas, colinas

sucessivas onde o vento

demora os dedos, e as cabras

passam, e o pastor

sonha oásis perto,

e o verde das palmeiras se levanta

até à nossa boca, até à nossa alma

com sede de outras dunas,

onde o corpo do amor

seja por fim um gole de água.

10
Maio
10

Outro poema para o meu amor doente

Outono, pássaro da melancolia

num céu sem cor que não promete nada,

mar de insónia onde o teu corpo paira

ou um aroma de terra molhada.

29
Jan
10

À beira de água

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.
30
Dez
09

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

O "Sal da Língua" deseja a todos um ano de 2010 pleno de encontros e de descobertas!
16
Ago
09

Com as gaivotas

Contente de me dar como as gaivotas
bebo o Outono e a tarde arrefecida.
Perfeito o céu, perfeito o mar, e este amor
por mais que digam é perfeito como a vida.
 
Tenho tristezas como toda a gente.
E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou dum céu que tem gaivotas,
leve o diabo essa morte dia a dia.
26
Jul
09

Seja isto dito assim

Seja isto dito assim, sem orgulho nem humildade, por não poder imaginar o homem reduzido à lama complacente dos próprios excrementos: para amar queria a terra toda, para morrer bastam-me os flancos do silêncio.

 

In: Memória Doutro Rio (1978)




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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