Posts Tagged ‘juventude

07
Dez
11

O sacríficio

Não gostaria de falar desse primeiro

encontro com as dificuldades do corpo.

Ou não seriam do corpo? Fora

do corpo haverá alguma coisa?

Foi há tantos anos, que espanta

que dure ainda na memória.

A extrema juventude guarda melhor

o tempo. Idade da flor, assim

lhe chamam. Idade de ser homem,

dizem também. O que é então

ser homem? Ou ser mulher?, se poderá

perguntar. Aqui, era ser homem: idade

de ir às putas. Entrava-se na sala

envergonhado, depois de se bater

à porta. Elas lá estavam; num salto

uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,

exclamou, olhando o cordeiro

do sacrifício. Ao fim, com dez escudos

pagavas o seres homem.

Não era caro, provares a ti mesmo

que pertencias ao rebanho.


In: Os lugares do lume (1998)

28
Nov
11

Não perguntes

De onde vem? De que fonte

ou boca

ou pedra aberta?

É para ti que canta

ou simplesmente

para ninguém?

Que juventude

te morde ainda os lábios?

Que rumor de abelhas

te sobe à garganta?

Não perguntes, escuta:

é para ti que canta.


In: Mar de Setembro (1961)

30
Dez
09

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

O "Sal da Língua" deseja a todos um ano de 2010 pleno de encontros e de descobertas!
09
Jul
09

Atrás da porta

Iluminados pela cor do trigo
os animais caminham para a única
estrela ao seu alcance:
 
a música do pastor, arte ou festa
da sua juventude: estrela
taciturna, talvez morta,
 
ou pão da nossa idade: cama
a dividir com o frio,
canção do vento atrás da porta.
08
Maio
09

Noite de Verão

Passaram muitos dias já, e se me lembro
dessa noite de verão
escurecendo de vaga em vaga
foi porque mesmo no escuro cantavam
as cigarras. Estendido
a meu lado respirava outro corpo.
Um rasto de juventude
habitava-me ainda. Há corpos
onde não termina.
Um vento leve, a que chamam brisa,
passava entre as miúdas folhas
da oliveira. De repente um cão
ladrou. Estremecemos ambos.
E soubemos então que, mesmo o amor,
teria um fim. Talvez naquela noite.
Talvez daí a mil anos.
22
Ago
08

Juventude

Sim, eu conheço, eu amo ainda

esse rumor abrindo, luz molhada,

rosa branca. Não, não é solidão,

nem frio, nem boca aprisionada.

Não é pedra nem espessura.

É juventude. Juventude ou claridade.

É um azul puríssimo, propagado,

isento de peso e crueldade.

13
Maio
08

Até amanhã

Sei agora como nasceu a alegria,

como nasce o vento entre barcos de papel,

como nasce a água ou o amor

quando a juventude não é uma lágrima.

 

É primeiro só um rumor de espuma

à roda do corpo que desperta,

sílaba espessa, beijo acumulado,

amanhecer de pássaros no sangue.

 

É subitamente um grito,

um grito apertado nos dentes,

galope de cavalos num horizonte

onde o mar é diurno e sem palavras.

 

Falei de tudo quanto amei.

De coisas que te dou

para que tu as ames comigo:

a juventude, o vento e as areias.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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