Deixo ao Miguel as coisas da manhã –
a luz (se não estiver já corrompida)
a caminho do sul,
o chão limpo das dunas desertas,
um verso onde os seixos são
de porcelana,
o ardor quase animal
de uma romã aberta.
In: O Peso da Sombra (1982)
Deixo ao Miguel as coisas da manhã –
a luz (se não estiver já corrompida)
a caminho do sul,
o chão limpo das dunas desertas,
um verso onde os seixos são
de porcelana,
o ardor quase animal
de uma romã aberta.
In: O Peso da Sombra (1982)
O corpo vai-se esquecendo de ter razão:
Deixa-te estar assim contra a vidraça,
pelos ombros caída
até ao chão a fatigada luz da sombra,
na mão o ínfimo azul de um lenço
de água. Ou menos ainda.
In: O Peso da Sombra (1982)
Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.
In: O Peso da Sombra (1982)
Com o tempo aproximar-se-ão os rios
e os montes, com o tempo
acabará por te vir comer à mão
e fazer ninho na tua cama
o silêncio
In: O Peso da Sombra (1982)
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos,
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
In: O Peso da Sombra (1982)
Estou sentado nos primeiros anos da minha vida
o verão já começou, e a porosa
sombra das oliveiras abre-se à nudez
do olhar. Lá para o fim da tarde
a poeira do rebanho não deixará
romper a lua. Quanto ao pastor,
talvez um dia suba com ele às colinas,
e se aviste o mar.
In: O Peso da Sombra (1982)
É um dos teus mais bonitos sorrisos
este Inverno
entornado nas areias.
Entrou pela varanda
com a espuma das vozes infantis.
E com os gatos dos telhados
não tardará a partir.
Passaste os dias a pôr sílabas sobre sílabas, dorme, estás cansado. Não são do rio essas luzes, dorme, já não há rios. Nos pátios do outono a noite já soltou os seus cães, dorme.
Era setembro ou outro mês qualquer propício a pequenas crueldades: a sombra aperta os seus anéis. Que queres tu ainda? O sopro das dunas sobre a boca? A luz quase despida? Fazer do corpo todo um lugar desviado do inverno?
Ouço correr a noite pelos sulcos do rosto – dir-se-ia que me chama, que subitamente me acaricia, a mim, que nem sequer sei ainda como juntar as sílabas do silêncio e sobre elas adormecer.