Arquivo de Fevereiro, 2011

28
Fev
11

Escuto o silêncio

Escuto o silêncio: em Abril

os dias são

frágeis, impacientes e amargos;

os passos

miúdos dos teus dezasseis anos

perdem-se nas ruas, regressam

com restos de sol e chuva

nos sapatos,

invadem o meu domínio de areias

apagadas,

e tudo começa a ser ave

ou lábios, e quer voar.

 

Um rumor cresce lentamente,

oh, lentamente

não cessa de crescer,

um rumor de pálpebras

ou pétalas

sobe de terraço em terraço,

descobre um dia

de cinzas com vestígios de beijos.

 

Um só rumor de sangue

jovem:

dezasseis luas altas,

selvagens, inocentes e alegres,

ferozmente enternecidas;

dezasseis potros

brancos na colina sobre as águas.

 

Como um rio cresce, cresce um rumor;

quero eu dizer,

assim um corpo cresce, assim

as ameixieiras bravas

do jardim,

assim as mãos,

tão cheias de alegria,

tão cheias de abandono.

 

Um rumor de sementes,

de cabelos

ou ervas acabadas de cortar,

um irreal amanhecer de galos

cresce contigo,

na minha noite de quatro muros,

no limiar da minha boca,

onde te demoras a dizer-me adeus.

 

Escreve um rumor: é só silêncio.

In: Ostinato Rigore (1964)

23
Fev
11

O Sal da Língua sugere… Correntes d’Escritas

O Sal da Língua sugere o Correntes d’Escritas, um encontro anual de escritores que decorre na Póvoa de Varzim, entre os dias 23 e 26 de Fevereiro e que já se encontra na sua 11ª edição. Os participantes, este ano, são representantes de vários Países:

Angola: Aida Gomes, Manuel Rui

Argentina: Daniel Mordzinski, Ricardo Romero

Brasil: Juva Batella, João Paulo Cuenca

Cabo Verde: Mário Lúcio Sousa

Chile: Carmen Yáñez, Luís Sepúlveda

Cuba: Karla Suarez

Espanha: Alberto Torres Blandina, César Ibáñez Paris, Ignacio del Valle, Ignacio Martínez de Pisón, José Manuel Fajardo, Kirmen Uribe, Ricardo Menéndez Salmón, Uberto Stabile

México: David Toscana

Moçambique: João Paulo Borges Coelho 

Portugal: Almeida Faria, Álvaro Magalhães, Ana Luísa Amaral, António Figueira, António Victorino D’Almeida, Aurelino Costa, Carlos Vaz Marques, Cristina Norton, David Machado, Eduardo Lourenço, Fernando Pinto do Amaral, Francisco Duarte Mangas, Francisco José Viegas, Gastão Cruz, Inês Pedrosa, Ivo Machado, João Gobern, João Manuel Ribeiro, José Carlos de Vasconcelos, José Jorge Letria, Jo´se Mário Silva, Júlio Conrado, Luís Represas, Luís Silva, Manuel Jorge Marmelo, Maria Flor Pedroso, Maria João Martins, Maria Manue Viana, Maria Teresa Horta, Mário Sousa Pinheiro, Mário Zambujal, Miguel Miranda, Nuno Crato, Nuno Júdice, Onésimo Teotónio Alneida, Patrícia Reis, Paulo Ferreira, Pedro Vieira, Raquel Ochoa, Rui Zink, valter hugo mãe, Vergílio Alberto Vieira, Yvette K. Centeno

São Tomé e Príncipe: Conceição Lima

Uruguay: Mario Delgado Aparaín

As Correntes são feitas de debates, mesas redondas, lançamentos de livros, convívios literários, recitais, exposições, actividades em escolas, numa atenção às línguas, às histórias e às palavras.

O Programa completo encontra-se aqui: http://www.cm-pvarzim.pt/go/correntesdescritas

23
Fev
11

Outro exemplo: Visconti

Trabalhava como um doido, ocultando o seu sofrimento. A doença humilha, agora era de uma cadeira de rodas que dirigia os actores, alterava a decoração, discutia as luzes. Trabalha para não morrer, dizem os amigos. Horas e horas para escolher o tom de um cortinado, a maneira de erguer um véu à altura da boca, a cor das maçãs no linho baço da toalha, com esse amor à realidade que só conhece quem a sabe tão fugidia. Abandonada a câmara, era ainda no trabalho que pensava em ler duas ou três páginas de Proust, de Stendhal. Apagara a luz, depois de ter ordenado que retirassem as flores do quarto, o aroma das gardénias começava a enjoá-lo. Mas o sono demorava. Tinha a cabeça cheia de imagens, sobretudo de sua mãe, surgindo no meio de uns versos de Auden, que fizera seus nos últimos tempos: When you see a fair form chase it / And if possible embrace it / Be it a girl or a boy… Adormecia tarde e era o primeiro a despertar. Chamou para que o lavassem, o vestissem. Recomeçaria uma vez mais a cena, com nova iluminação. O rosto de Tullio Hermil deveria estar na penumbra, só as mãos francamente iluminadas. Porque é nas mãos… Não, não, as mãos são inocentes. É no espírito que tudo tem origem; mesmo o amor; mesmo o crime. Excepto a morte. A morte era bem no seu corpo que principiava. Ali estava ela, tomando conta de si. Via-a crescer a cada instante, essa cadela. De súbito, tornara-se real, os dentes afiados, a baba escorrendo, o salto iminente. Em grande plano.

In: Vertentes do Olhar (1987)

 

Apontamento do Sal da Língua: Luchino Visconti, aclamado realizador italiano, realiza o seu último filme – O Inocente – com interpretações de Giancarlo Giannini e Laura Antonelli, já de cadeira de rodas, na fase final da sua vida e em estado de completa degradação física. Este filme, que Visconti não chegou a ver pronto, baseia-se no romance de Gabriele D´Annunzio, autor que se ligou ao fascismo e foi hostilizado pela crítica de esquerda. Por conta dessa escolha, o cineasta foi chamado de decadente, o que admitia ser. “Tenho da decadência uma opinião bastante favorável”, dizia. A história do aristocrata que mata o seu bebé, convencido de que este resulta do adultério da mulher, trata da culpa da aristocracia e é um fecho terrível para a obra de Visconti. Debilitado, ele infernizou a vida dos colaboradores, acusando-os de traição sempre que a imagem e a interpretação não saíam exactamente como ele queria. (Fonte: http://www.italiaoggi.com.br)

19
Fev
11

Canto rouco

Antes que perca a memória

das pedras do adro,

antes do corpo ser

um só e quebrado

ramo sem água,

devolvei-me o canto

rouco

e desamparado

do harmónio na noite.

Mãe!,

desamparado na noite.

In: Coração do Dia (1958)

18
Fev
11

Sou fiel ao ardor

Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos,
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

In: O Peso da Sombra (1982)

17
Fev
11

Casa Velha

Não é a primeira vez que me queixo,

ninguém me escuta.

Esta noite a chuva entrou-me pelos ossos

e não há quem acenda o lume.

Quem partiu levou consigo

o rapazito com olhos de coral,

deixando atrás de si a porta aberta.

In: O Outro Nome da Terra (1988)

13
Fev
11

O Sal da Língua sugere… Encontros na Poesia

O Sal da Língua sugere o ciclo Encontros na Poesia, um ciclo de poesia entre poetas criado com o objectivo de juntar poetas contemporâneos portugueses e espanhóis. As honras de abertura, no próximo dia 15 no Instituto Cervantes, em Lisboa, cabem a Nuno Júdice e a Jaime Siles.

Nuno Júdice, ensaísta, poeta, ficcionista, e Jaime Siles, presidente da Sociedade Espanhola de Estudos Clássicos e também poeta e ensaísta, vão recitar uma parte da sua poesia e ambos manterão uma conversa sobre a criação poética.  

O ciclo decorrerá ao longo de 2011 e será um bom ponto de encontro para ouvir o que sobre poesia e com poesia nos têm os nossos poetas a dizer.

Jaime Siles e Nuno Júdice

 

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice

13
Fev
11

Luz recente

Respiras com cautela a luz

recente.

Deve ter acordado: canta.

Anos e anos adormecida

no fundo da pupila.

Já nem te lembravas

que fora assim tão jovem

e tinha

o nome da alegria.

Agora canta. Canta

em surdina.

In: Os Lugares do Lume (1998)

06
Fev
11

Adivinha

Não é galo nem galão,

nem padre nem sacristão:

é um animal esquisito,

entre peru e pavão,

tem barbas ruivas de milho,

tem olhos de crocodilo,

rabo de rato ou de cão,

ão  ão  ão!

In: Aquela Nuvem e Outras (1986)

02
Fev
11

Coda

Quando o ser da luz for

o ser da palavra,

no seu centro arder

e subir com a chama

(ou baixar à água)

então estarei em casa.

In: Sal da Língua (1995)




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
Fevereiro 2011
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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