Que trabalho exasperado, o da língua, essa em que dizes com mão insegura desvios, desacertos, desalinhos. Aproveito o mote deste poema de Eugénio de Andrade, a propósito dos trabalhos da língua, da língua artística, da criação poética, para apresentar um espaço bastante original e que se debruça precisamente sobre os processos da criação da Poesia, em todas as suas vertentes. É o projecto Vidráguas, da autoria da poetisa brasileira Carmen Silvia Presotto e do fotógrafo também brasileiro Ricardo Hegenbart. Agradeço a Carmen a oportunidade que deu ao Sal da Língua de estar representado no seu espaço Vidráguas e fico bastante feliz por poder dar a minha contribuição para a divulgação da língua de Eugénio. Em relação ao convite, Carmen, só posso dizer que não está esquecido. Um abraço deste lado do mundo, geograficamente falando, pois o milagre da poesia é tornarmo-nos cúmplices nas descobertas e nos sentimentos.
Arquivo de Maio, 2009
29
Maio
09
Que trabalho
27
Maio
09
Os difíceis amigos
Estes mortos difíceis que não acabam de morrer dentro de nós; o sorriso da fotografia, a carícia suspensa, as folhas dos estios persistindo na poeira; difíceis; o suor dos cavalos, o sorriso, como já disse, nos lábios, nas folhas dos livros; não acabam de morrer; tão difíceis, os amigos.
26
Maio
09
Coda
Quando o ser da luz for o ser da palavra, no seu centro arder e subir com a chama (ou baixar à agua), então estarei em casa.
24
Maio
09
Rumor do mundo
As palavras, vício torpe, antigo. As últimas? As primeiras? Como os ouriços abrem-se ao rumor do mundo: o sol ainda verde dos limões, os esquilos de outras tardes, o latido da chuva nas janelas, os velhos em redor do lume - nunca foram tão belas.
22
Maio
09
Sobre um corpo
Sobre o teu corpo caio daquele modo que o verão tem de espalhar os cabelos na água esparsa dos dias e faz das peónias uma chuva de oiro ou a mais incestuosa das carícias.
Atado ao silêncio, o coração ainda pesado de amor, jazes de perfil, escutando, por assim dizer, as águas negras da nossa aflição. Pálidas vozes procuram-te na bruma; de prado em prado procuram um potro, a palmeira mais alta sobre o lago, um barco talvez ou o mel entornado da nossa alegria. Olhos apertados pelo medo aguardam na noite o sol onde cresces, onde te confundes com os ramos de sangue do verão ou o rumor dos pés brancos da chuva nas areias. A palavra, como tu dizias, chega húmida dos bosques: temos que semeá-la; chega húmida da terra: temos de defendê-la; chega com as andorinhas que a beberam sílaba a sílaba na tua boca. Cada palavra tua é um homem de pé, cada palavra tua faz do orvalho uma faca, faz do ódio um vinho inocente para bebermos, contigo no coração, em redor do fogo. 1971
20
Maio
09
Tempo em que se morre
Agora é verão, eu sei. Tempo de facas, tempo em que se perdem os anéis as cobras à míngua de água. Tempo em que se morre de tanto olhar os barcos. É no verão, repito. Estás sentada no terraço e para ti correm todos os meus rios. Entraste pelos espelhos: mal respiras. Vê-se bem que já não sabes respirar, que terás de aprender com as abelhas. Sobre os gerânios te debruças lentamente. Com rumor de água sonâmbula ou de arbusto decepado dás-me a beber um tempo assim ardente. Pousas as mãos sobre o meu rosto, e vais partir sem nada me dizer, pois só quiseste despertar em mim a vocação do fogo ou do orvalho. E devagar, sem te voltares, pelos espelhos entras na noite.
18
Maio
09
Não sei
Não sei porque diabo escolheste janeiro para morrer: a terra está tão fria. É muito tarde para as lentas narrativas do coração, o vento continua a tarefa das fohas: cobre o chão de esquecimento. Eu sei: tu querias durar. Pelo menos durar tanto como o tronco da oliveira que teu avô tinha no quintal. Paciência, querido, também Mozart morreu. Só a morte é imortal.
16
Maio
09
Lisboa
Esta névoa sobre a cidade, o rio, as gaivotas doutros dias, barcos, gente apressada ou com o tempo todo para perder, esta névoa onde começa a luz de Lisboa, rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água, nada mais quero de degrau em degrau.
14
Maio
09
Surdo, subterrâneo rio
Surdo, subterrâneo rio de palavras me corre lento pelo corpo todo; amor sem margens onde a lua rompe e nimba de luar o próprio lodo. Correr do tempo ou só rumor do frio onde o amor se perde e a razão de amar - surdo, subterrâneo, impiedoso rio, para onde vais, sem eu poder ficar?