Neste “O lugar dos amigos” é dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio – os seus colegas e amigos.
“… por tanta coisa que amamos em comum…”, por João Barrento
25.06.2005
Era uma vez um poeta que há dez anos me inscrevia a frase que aqui me serve de título na dedicatória de um livro que trazia já nas suas páginas o gosto a sal que temperava o sol do mar da Foz e das planícies alentejanas.
Anos mais tarde, num “Auto-retrato”, o poeta diria que “poucas coisas há absolutamente necessárias”. São essas poucas coisas, as que (como o poeta soube ou intuiu) “amamos em comum”, são elas que constituem os mais comuns lugares, tantas vezes ditos lugares-comuns, da poesia de Eugénio de Andrade, de alguns temas, imagens, posturas que a sua poesia obstinadamente convoca, servindo-se das “palavras nuas e limpas de um cerimonial arcaico”. Sempre os lugares-comuns constituíram a cepa-mãe, essencial ou primordial, de muita poesia, uma espécie de cimento aglutinador que garante a sobrevivência no tempo e o reconhecimento universal no espaço. Continuamos a poder ler Homero e Dante, e fazemo-lo em todas as línguas. É quando os lugares-comuns da experiência se plasmam nessas palavras nuas, rente ao dizer, que a poesia mais transparece e permanece, recortada numa luz não cindida, plena e ao mesmo tempo ciente do seu reverso, a sombra ou a penumbra. Ao lê-la, lavamos a alma em que as coisas do mundo, quer queiramos quer não, deixaram as marcas sujas das suas dedadas. Quando assim é, não há o perigo de a palavra se corromper ou de querer corromper o mundo: “Una palavra vale / un paisaje mas no / lo compra…”, escreve Ángel Crespo num poema em homenagem a Eugénio de Andrade.
Sabemos hoje, melhor do que nas três décadas que medeiam entre “As Mãos e os Frutos” e “Matéria Solar”, que nem só de luz se fez a palavra clara da poesia límpida de Eugénio de Andrade. António Ramos Rosa, também ele poeta da luz da palavra – se bem que mais refractada por uma ontologia do poético do que por uma fenomenologia do gesto elementar -, dirá da palavra de Eugénio: “Conheces as palavras que amanhecem / na sombra quase lancinantes (…) / e na luz germina a tua sombra…” De facto, a poesia que sabe da luz tem de saber da sombra. A que celebra o júbilo do corpo branco e nu conhece o sal da língua, e escreve-se, diz ainda Ramos Rosa, “entre veios de melancolia e o fulgor da cal”. A poesia de Eugénio de Andrade não se serve, nem do júbilo gratuito nem do “pathos” ditirâmbico, mas também não se alimenta de nenhuma espécie de melancolia gotejante, nem sequer do sentido, mais cultural do que natural, de uma qualquer perda irreparável como aquela que sustenta tanta poesia do desencanto. Aqui, poesia continua a ser encantamento, fórmula mágica breve, convocação de imagens quase puras, sem conceito nem complemento discursivo. Imagens efémeras e intensas de uma poesia – disse-o Eduardo Lourenço já em 1987 – sem sujeito, ideia que o próprio poeta esclareceria de forma só aparentemente paradoxal: “… eis o homem. Eis o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos.” Aqui, lemos apenas o olhar que pousa, sereno, nas coisas que crê belas. E, sabemo-lo há muito tempo, pelo menos desde o “spleen” de Baudelaire e de Pessanha, tudo o que é belo partilha da tristeza, de uma tristeza simplesmente igual à da “lição do dia quando morre” (Fernando Pinto do Amaral).
Por isso, a secreta certeza de que olhar as coisas e nomeá-las nos pode dar acesso a elas é talvez uma das convicções maiores da poesia de Eugénio de Andrade. Nela, nomear é querer “saber por dentro” (“Os Lugares do Lume”), num processo poético de aprendizagem do instável, que, no entanto, é também aquilo em que mais podemos confiar: porque é uma aprendizagem que se transforma em escrita que passa essencialmente pelo instinto, pelo corpo e por um certo sentido inato da beleza. Fica, é claro, sempre aquele resto das coisas, dos corpos e dos sentidos a que se não chega – mas é precisamente esse resto que o trabalho incessante, repetitivo e obstinado da poesia de Eugénio sempre busca à superfície do mundo e da pele (não nas suas profundezas metafísicas, a que esta poesia é alheia), aquele rumor que todos os sentidos escutam, “rumor, / não do mundo, que ninguém abarca, / apenas da brancura de uma folha / e outra folha ainda de papel”. (“Os Lugares do Lume”). Daqui – mas só depois de percebermos isto – deriva o filão ideativo que atravessa muitos dos livros de Eugénio: a poesia joga-se entre Amor e Tempo, e nesse jogo o olhar descobre a “matéria solar”, os lugares de uma luz que atravessa o espaço da infância, da existência na sua dimensão mais despojada ou do pequeno formato dos dias – e, naturalmente, da própria poesia, que em Eugénio de Andrade é sempre uma escrita sem desperdício, captação intensa e intensiva do mínimo.
Mas é bom não nos iludirmos com o brilho dessa matéria solar, um dos mais redutores lugares-comuns quando se fala da poesia de Eugénio de Andrade. Se este poeta é, como lembra António Lobo Antunes num daqueles seus depoimentos carregados de afecto visceral, “o amigo mais íntimo do Sol”, ele não é menos o conhecedor melancólico da sombra. Os seus livros da última década e meia confirmam-no, no adensamento e na delicada tristeza que progressivamente os invadem, mas que já vêm de trás, pelo menos desde a subida à “haste mais alta da melancolia” que encontramos em “Despedida”, poema de “Ostinato Rigore” (1964), ou do insistente sentido do precário em “O Peso da Sombra” (1982), apontando “para o recorte fugaz do homem sobre o tempo e do livro sobre a terra” (Maria Alzira Seixo). Na sua aparente transparência e simplicidade, a poesia de Eugénio foi sempre um campo de tensões, uma poesia bipolar em que o Sol alterna com o sal (da língua e do mundo), os verões com invernos, a claridade da música de Mozart com a caminhada de um Mark Rothko para o negro, o júbilo dos corpos com a certeza do trabalho inexorável do tempo e das feridas da memória. Variações sobre um velho tema, retomado num dos poemas de “Os Sulcos da Sede”: “Dai-me ainda outro verão, / um verão do sul (…) / Ou por fim o silêncio. / Caindo a prumo.”
Era uma vez um poeta que viveu sempre à margem do mundo e da feira das vaidades literárias, que escolheu poucas, muito poucas coisas como absolutamente necessárias e delas falou com uma inquebrantável parcimónia e obstinado rigor poético. Há pouco mais de três anos, talvez num daqueles dias de dolorosa melancolia reverberando nas ondas do mar da Foz, do outro lado do jardim ironicamente dito do Passeio Alegre, ou talvez num momento de clara lucidez, o poeta do branco falava-me, na dedicatória de mais um livro, de “esta poesia a chegar ao fim”. Sabendo embora que “a poesia já não é uma casa” e que “já não é fácil, Eugénio, um poema” (Joaquim Manuel Magalhães), em plena consciência da vulnerabilidade e da precariedade da “escrita a lápis” desta página, arrisco, ainda assim, dizer que não há fim. Que não há fim para a folha de erva ao vento que resiste e se renovará na leitura, que foi e é a poesia de Eugénio de Andrade.