Posts Tagged ‘luz

24
Ago
14

Tarde ferida

Que mar a pique

ou luz,

ausente e quente,

na boca tão intensa

que fere a tarde?

 

In: Coração do dia (1958)

13
Jul
13

Entre o primeiro e o último crepúsculo

Eu tinha dois ou três anos, tenho agora sessenta, e o apelo da luz é o mesmo, como se dela tivesse nascido e só a ela não pudesse deixar de regressar. Entre o primeiro crepúsculo e o último, sempre o corpo todo se deixou penetrar por esse ardor que se fazia carícia na parte mais diáfana e imponderável do ser, e a que, se não lhe chamarmos luz também, não saberemos nunca que nome dar.

20.11.85

 

In: Vertentes do Olhar (1987)

28
Abr
12

Memória dos Dias

Vais e vens na memória dos dias

onde o amor

cercou a casa de luz matutina.

Às vezes sabíamos de ti pelo aroma

das glicínias escorrendo no muro,

outras pelo rumor do verão rente

ao oiro velho dos plátanos.

Vais e vens. E quando regressas

é o teu cão o primeiro a sabê-lo.

Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo

também o amor chegara a casa.

 

In: Os Sulcos da Sede (2001)

09
Abr
12

Infância

Saio de casa para ver os estorninhos; não têm conta a esta hora da tarde, em revoadas sucessivas sobre as árvores. Quando a noite cai já estou de volta, o olhar atravessado por rápidos fulgores. A luz é tudo o que trago comigo, porque também eu tenho do escuro.

25.4.85

 

In: Vertentes do Olhar (1987)

26
Mar
12

Amanhecer em Estremoz

Uma a uma a noite abria

à luz matinal das rolas

as minúsculas portas da alegria.

 

In: A Escrita da Terra (1974)

Vistas da Torre de Menagem do Castelo de Estremoz

13
Mar
12

Matinalmente

Com a luz, com a cal

do verão entornada pela casa,

com essa música

tão amada e bárbara,

com a púrpura correndo

de colina em colina,

fazer uma coroa –

e de lágrimas cheia a taça

sagrar-te príncipe da vida.

 

In: O Outro Nome da Terra (1988)

05
Mar
12

Não, não é ainda a inquieta

Não, não é ainda a inquieta

luz de março

à proa de um sorriso,

nem a gloriosa ascensão do trigo,

 

a seda de uma andorinha roçando

o ombro nu,

o pequeno e solitário rio adormecido

na garganta;

 

não, nem o cheiro acidulado e bom

do corpo, depois do amor,

pelas ruas a caminho do mar,

ou o despenhado silêncio

 

da pequena praça,

como um barco, o sorriso à proa;

 

não, é só um olhar.

 

In: Branco no Branco (1984)

 

 

06
Nov
11

A luz do pátio

Deixas a luz do pátio acesa,

a porta aberta – que esperas ainda?

Amas agora com amor dobrado

a vida, o suor misturado ao sal

da saliva, o rumor

das águas no sol das sementes,

a treva do cabelo incendiada

nas mãos outra vez adolescentes.


 

In: O Outro Nome da Terra (1988)

08
Ago
11

É um sopro

É um sopro de animal ferido

entrar dentro de ti – o tempo só

da luz atravessar

a sombra lancinante da cintura.

25
Jul
11

Soberania

Voltar, recomeçar – com que palavras? Um bando de ganapos ri, canta na esquina da rua. Gostaria de pensar que eu e essas vozes que chafurdam na noite se ignoram até ao osso. Mas não é assim: a vulgaridade desses sons atravessa as paredes; são, apesar dela, uma companhia. Habito um país sem memória – alguém sabe de lugar mais triste? É o tempo do tordo branco emigrar. Voltemos pois ao princípio. E o princípio são meia dúzia de palavras e uma paixão pelas coisas limpas da terra, inexoravelmente soberanas. Essas, onde a luz se refugia, melindrosa. Só elas abrem as portas aos sortilégios, e os sortilégios são diurnos, mesmo quando invocam a noite, e as águas do silêncio, e o indelével tempo sem tempo.

3.2.86

 

In: Vertentes do Olhar (1987)




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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