Que mar a pique
ou luz,
ausente e quente,
na boca tão intensa
que fere a tarde?
In: Coração do dia (1958)
Que mar a pique
ou luz,
ausente e quente,
na boca tão intensa
que fere a tarde?
In: Coração do dia (1958)
Eu tinha dois ou três anos, tenho agora sessenta, e o apelo da luz é o mesmo, como se dela tivesse nascido e só a ela não pudesse deixar de regressar. Entre o primeiro crepúsculo e o último, sempre o corpo todo se deixou penetrar por esse ardor que se fazia carícia na parte mais diáfana e imponderável do ser, e a que, se não lhe chamarmos luz também, não saberemos nunca que nome dar.
20.11.85
In: Vertentes do Olhar (1987)
Vais e vens na memória dos dias
onde o amor
cercou a casa de luz matutina.
Às vezes sabíamos de ti pelo aroma
das glicínias escorrendo no muro,
outras pelo rumor do verão rente
ao oiro velho dos plátanos.
Vais e vens. E quando regressas
é o teu cão o primeiro a sabê-lo.
Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo
também o amor chegara a casa.
In: Os Sulcos da Sede (2001)
Saio de casa para ver os estorninhos; não têm conta a esta hora da tarde, em revoadas sucessivas sobre as árvores. Quando a noite cai já estou de volta, o olhar atravessado por rápidos fulgores. A luz é tudo o que trago comigo, porque também eu tenho do escuro.
25.4.85
In: Vertentes do Olhar (1987)
Uma a uma a noite abria
à luz matinal das rolas
as minúsculas portas da alegria.
In: A Escrita da Terra (1974)
Com a luz, com a cal
do verão entornada pela casa,
com essa música
tão amada e bárbara,
com a púrpura correndo
de colina em colina,
fazer uma coroa –
e de lágrimas cheia a taça
sagrar-te príncipe da vida.
In: O Outro Nome da Terra (1988)
Não, não é ainda a inquieta
luz de março
à proa de um sorriso,
nem a gloriosa ascensão do trigo,
a seda de uma andorinha roçando
o ombro nu,
o pequeno e solitário rio adormecido
na garganta;
não, nem o cheiro acidulado e bom
do corpo, depois do amor,
pelas ruas a caminho do mar,
ou o despenhado silêncio
da pequena praça,
como um barco, o sorriso à proa;
não, é só um olhar.
In: Branco no Branco (1984)
Deixas a luz do pátio acesa,
a porta aberta – que esperas ainda?
Amas agora com amor dobrado
a vida, o suor misturado ao sal
da saliva, o rumor
das águas no sol das sementes,
a treva do cabelo incendiada
nas mãos outra vez adolescentes.
In: O Outro Nome da Terra (1988)
É um sopro de animal ferido
entrar dentro de ti – o tempo só
da luz atravessar
a sombra lancinante da cintura.
Voltar, recomeçar – com que palavras? Um bando de ganapos ri, canta na esquina da rua. Gostaria de pensar que eu e essas vozes que chafurdam na noite se ignoram até ao osso. Mas não é assim: a vulgaridade desses sons atravessa as paredes; são, apesar dela, uma companhia. Habito um país sem memória – alguém sabe de lugar mais triste? É o tempo do tordo branco emigrar. Voltemos pois ao princípio. E o princípio são meia dúzia de palavras e uma paixão pelas coisas limpas da terra, inexoravelmente soberanas. Essas, onde a luz se refugia, melindrosa. Só elas abrem as portas aos sortilégios, e os sortilégios são diurnos, mesmo quando invocam a noite, e as águas do silêncio, e o indelével tempo sem tempo.
3.2.86
In: Vertentes do Olhar (1987)