Posts Tagged ‘sombra

15
Jun
14

Disssonâncias

Pedra a pedra

a casa vai regressar.

Já nos ombros sinto o ardor

da sua navegação.

 

Vai regressar

o silêncio com as harpas.

As harpas com as abelhas.

 

No verão morre-se

tão devagar à sombra dos ulmeiros!

 

Direi então:

Um amigo

é o lugar da terra

onde as maçãs brancas são mais doces.

 

Ou talvez diga:

O outono amadurece nos espelhos.

Já nos meus ombros sinto

A sua respiração.

Não há regresso: tudo é labirinto.

 

In: Obscuro Domínio (1972)

06
Jun
12

O corpo vai-se esquecendo de ter razão

O corpo vai-se esquecendo de ter razão:

Deixa-te estar assim contra a vidraça,

pelos ombros caída

até ao chão a fatigada luz da sombra,

na mão o ínfimo azul de um lenço

de água. Ou menos ainda.

 

In: O Peso da Sombra (1982)

25
Out
10

Ao abrigo das injúrias

Por que palavra começar, por que desordem? O vento levanta-se rápido da rugosidade da pedra, o cavalo de fogo escouceia, relincha no pátio, o rapazito abre-lhe o portão, galopa na poeira.

Desse dia pouco mais há a dizer – o crepúsculo foi-se aproximando dos degraus da casa, já não se distingue o arado da sua sombra, e ao fundo do horizonte o garoto, cúmplice do vento, afasta-se ao abrigo de injúrias.

In: Memória Doutro Rio (1978)

09
Jan
10

Ardendo na sombra

Tu estavas ali,
perto da laranjeira.

(Porque havia
uma laranjeira ao lado
da casa.)

Estavas ali, as mãos
iluminadas.
A luz vinha dos frutos
ardendo na sombra.

A laranjeira
ainda lá se encontra.
E tu? Ainda aí estás?

Ao longe erguia-se a poeira
quando o rebanho
ao fim da tarde
passava – era verão.

Só no verão
a poeira se levanta assim
sem haver vento.

No tanque, um fio débil
de água
servia para nos sentarmos
à beira do seu rumor.

Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Essa tristeza é ainda
minha.

Mas só ela.
E a laranjeira.
29
Set
09

Era setembro

Era setembro
ou outro mês qualquer
propício a pequenas crueldades:
a sombra aperta os seus anéis.
Que queres tu ainda?
O sopro das dunas sobre a boca?
A luz quase despida?
Fazer do corpo todo
um lugar desviado do inverno?
03
Abr
09

A figueira

Este poema começa no verão,

os ramos da figueira a rasar

a terra convidavam a estender-me

à sua sombra. Nela

me refugiava como num rio.

A mãe ralhava: A sombra

da figueira é maligna, dizia.

Eu não acreditava, sabia bem

como cintilavam maduros e abertos

seus frutos aos dentes matinais.

Ali esperei por essas coisas

reservadas aos sonhos. Uma flauta

longínqua tocava numa écloga

apenas lida. A poesia roçava-

-me o corpo desperto até ao osso,

procurava-me com tal evidência

que eu sofria por não poder dar-lhe

figura: pernas, braços, olhos, boca.

Mas naquele céu verde de Agosto

apenas me roçava, e partia.

11
Fev
09

Conhecias o Verão pelo cheiro

Conhecias o verão pelo cheiro,

o silêncio antiquíssimo

do muro, o furor das cigarras,

inventavas a luz acidulada

a prumo, a sombra breve

onde o rapazito adormecera,

o brilho das espáduas.

 

É o que te cega, o sol da pele.

08
Fev
09

A tua vida é uma história triste

A tua vida é uma história triste.

A minha é igual à tua.

Presas as mãos e preso o coração,

enchemos de sombra a mesma rua.

 

A nossa casa é onde a neve aquece.

A nossa festa, onde o luar acaba.

Cada verso em nós próprios apodrece,

cada jardim nos fecha a sua entrada.

20
Jan
09

Sobre o desejo

Hei-de levar este esplendor para um poema, dizia eu, sempre que me estendia à sombra branca e miúda de uma oliveira. Mas fosse onde fosse, em terras de Corfu ou de Maiorca, nos campos de Siena ou no chão da minha infância, sempre adormeci sobre o desejo.

Hoje, que a violência do estio me levou a escavar a própria pedra, queria apenas uma dessas árvores de bruma, por mais exígua, e adormecer à sua sombra.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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