Posts Tagged ‘terra

09
Mar
12

Deste modo ou de qualquer outro

A doçura da erva

alta

como cantar ao crepúsculo,

 

deste modo ou de qualquer outro,

cego

de procurar nos flancos

os vestígios do lume,

 

deixa-me dizer: quando a pedra

do verão era água

na tua boca

o meu nome era um barco,

 

sobre os ombros a

noite nua

no coração o rouxinol

da bruma,

 

éramos nós meu amor éramos nós,

ninguém nos via,

 

essa música

 

onde a terra respira.

 

In: Véspera da Água (1973)

06
Jun
11

As cabras

Por toda a parte onde a terra for pobre e alta, elas aí estão, as cabras – negras, muito femininas nos seus saltos miúdos, de pedra em pedra. Gosto destas desavergonhadas desde pequeno. Tive uma que me deu meu avô, e ele próprio me ensinou a servir-me, quando tivesse fome, daqueles odres fartos, mornos, onde as mãos se demoravam vagarosas antes de a boca se aproximar para que o leite se não perdesse pelo rosto, pelo pescoço pelo peito até, o que às vezes acontecia, quem sabe se de propósito, o pensamento na vulvazinha cheirosa. Chamava-se Maltesa, foi o meu cavalo, e não sei se a minha primeira mulher.

 

In: Memória Doutro Rio (1978)

25
Jul
10

Nas palavras

Respiro a terra nas palavras,

no dorso das palavras

respiro

a pedra fresca da cal;

respiro um veio de água

que se perde

entre as espáduas

ou as nádegas;

respiro um sol recente

e raso

nas palavras,

com lentidão de animal.

21
Jan
10

Olhos postos na terra, tu virás

Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
14
Set
09

O sal da terra

Eram o sal da terra, as abelhas,
no ar leve
e verde das tílias.
Iam e vinham ligeiras como se a fadiga
lhes fosse alheia: algumas
regressavam à colina
onde tecem a seda da sombra;
outras caem a prumo,
embriagadas com a violenta
fragância das tímidas flores
quase apagadas.
Basta estar atento
à luz oblíqua para descobrir
como a perfeição é completa deste lado
do mundo. Mas só eu agora
de olhos fechados sigo o seu rumor.
26
Jul
09

Seja isto dito assim

Seja isto dito assim, sem orgulho nem humildade, por não poder imaginar o homem reduzido à lama complacente dos próprios excrementos: para amar queria a terra toda, para morrer bastam-me os flancos do silêncio.

 

In: Memória Doutro Rio (1978)

16
Jul
09

Assim seja

A terra é boa, e o corpo
apesar de bastardo
traz consigo pátios
e cavalos. A multiplicação
da luz torna mais limpo o ar,
até mesmo a lebre
salta dos fenos.
Contenta-te com ser, hoje
amanhã
outro dia, esta luz breve.
05
Jul
09

Retrato

No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.
 
Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.
 
Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.

 

Notícias da Fundação:
Na sede da Fundação Eugénio de Andrade vai ser apresentado, no próximo sábado, dia 11 de Julho, pelas 18h30, o primeiro livro, Delírio Húngaro, do jovem poeta Nuno Brito. Publicado pela editora que tem o nome de Edita-me, o livro será apresentado por Arnaldo Saraiva e por Manaíra Aires. A entrada é livre.
18
Maio
09

Não sei

Não sei porque diabo escolheste
janeiro para morrer: a terra
está tão fria.
É muito tarde para as lentas
narrativas do coração,
o vento continua
a tarefa das fohas:
cobre o chão de esquecimento.
Eu sei: tu querias durar.
Pelo menos durar tanto como o tronco
da oliveira que teu avô
tinha no quintal. Paciência,
querido, também Mozart morreu.
Só a morte é imortal.
12
Maio
09

Os frutos

Assim eu queria o poema:
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.



"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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