Arquivo de Setembro, 2010

29
Set
10

O lugar dos amigos – José da Cruz Santos

Neste “O lugar dos amigos” é dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio – os seus colegas e amigos.

Uma tulipa amarela por José da Cruz Santos

 

à dedicação de Ana Maria Moura

Quantas das edições ou das iniciativas que lhe dediquei não nasceram nesse lugar? Lembro-me que um dia lhe disse, Vou organizar uma semana comemorativa dos seus trinta anos de trabalho. E, praticamente à sua revelia, com a cumplicidade fraterna do Armando Alves, que me acompanhava nos meus sonhos de editor desde os primeiros dias da Inova, lá se começou a construir essa homenagem, a primeira que esta cidade e este país lhe dedicaram, nas antigas instalações de uma instituição desta terra. Do seu distanciamento inicial, avesso como o Eugénio era a sentir-se na ribalta, passou depois a uma participação entusiasmada, e disso dá conta a dedicatória que escreveu no exemplar que depois me ofereceu da primeira edição de “As Mãos e os Frutos”.

Num dos próximos domingos, Eugénio, regressarei a esse velho Café para lhe dizer que consigo não aprendi somente os caminhos que levam aos mais altos lugares da poesia, a San Juan de la Cruz e Camões, a Bashô e Camilo Pessanha, a Rilke e Cesário Verde, mas também o rigor da palavra despojada de tudo o que lhe retirasse a leveza que Você encontrava na música de Mozart, a austeridade com que recusava as mundanidades com que tantos engorduram a vida, a suprema elegância com que vivia os seus dias desabitados de luxos e de estridências. E hei-de procurar no dicionário as palavras exactas para falar dessa luz de uma alegria contida que lhe aparecia nos olhos quando lhe levava uma pequenina lembrança, talvez um livro, talvez uma caixa de chocolates, para o Miguel.

Num dos próximos domingos, Eugénio, voltarei a esse Café, onde nunca mais estive depois que Você saiu da Rua do Duque de Palmela, e deixarei em cima da mesa uma túlipa amarela, e com ela a tristeza sem remédio de não mais poder ouvir, como eu lhe dizia, a sua voz de sereia a ler-me o poema que acabara de escrever, muitas vezes depois de uma prolongada vigília em luta com um verso, com uma sílaba…

Num dos próximos domingos, Eugénio, procurá-lo-ei mais uma vez, uma última vez, nesse velho Café Duque, para lhe pedir um poema para Vasco Gonçalves ou uma dedicatória para Álvaro Cunhal, e nos olhos hei-de ter, não poderei deixar de ter, as lágrimas que nascem da angústia de saber que não mais estará connosco o poeta que um dia escreveu este poema que poderia ser para mim, para todos nós, nestes dias frios e desamparados,

Junho chegara ao fim, a magoada

luz dos jacarandás, que me pousava

nos ombros, era agora o que tinha

para repartir contigo,

e o coração desmantelado

que só aos gatos servirá de abrigo.

José da Cruz Santos

Porto, Junho de 2005

22
Set
10

Calcedónia

Afinal os romanos eram

como eu: amavam

os lugares onde a grandeza

e a solidão

andam de mãos dadas.

 

In: Escrita da Terra  (1974)

07
Set
10

Coral

É um dos corais de Leipzig,

o quarto. Sem sabermos como, desceu

ao chão da alma. A música

é este abismo, esta queda

no escuro. Com o nosso corpo

tece a sua alegria,

faz a claridade

dos bosques com a nossa tristeza.

Pela sua mão conhecemos a sede,

o abandono, a morte. Mas também

o êxtase de estrela em estrela.

E a ressurreição.

 

In: Os Lugares do Lume (1998)

05
Set
10

O pequeno persa

É um pequeno persa

azul o gato deste poema.

Como qualquer outro, o meu

amor por esta alminha é materno:

uma carícia minha lambe-lhe o pêlo,

outra põe-lhe o sol entre as patas

ou uma flor à janela.

Com garras e dentes e obstinação

transforma em festa a minha vida.

Quer-se dizer, o que me resta dela.

 

In: O Outro Nome da Terra (1988)

01
Set
10

Fecundou-te a vida nos pinhais

Fecundou-te a vida nos pinhais.

Fecundou-te de seiva e de calor.

Alargou-te o corpo pelos areais

onde o mar se espraia sem contorno e cor.

Pôs-te sonho onde havia apenas

silêncio de rosas por abrir,

e um jeito nas mãos morenas

de quem sabe que o fruto há-de surgir.

Brotou água onde tudo era secura.

Paz onde morava a solidão.

E a certeza de que a sepultura

é uma cova onde não cabe o coração.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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