Arquivo de Fevereiro, 2009

28
Fev
09

Cristalizações

1

Com palavras amo.

 

2

Inclina-te como a rosa

só quando o vento passe.

 

3

Despe-te

como o orvalho

na concha da manhã.

 

4

Ama

como o rio sobe os últimos degraus

ao encontro do seu leito.

 

5

Como podemos florir

ao peso de tanta luz?

 

6

Estou de passagem:

amo o efémero.

 

7

Onde espero morrer

será manhã ainda?

25
Fev
09

Carne de amor

Carne. Carne de amor. Love-flesh,

como lhe chamou Whitman.

Amada carne até aos bordos cheia

de ardor, fremente de seiva.

Carne endurecida

até à alma. Erecta carne

profunda. Vertical esplendor

subindo às estrelas. Ou mais

alto ainda. Talvez

à eternidade.

Ámen.

24
Fev
09

Faz uma chave, mesmo pequena

Faz uma chave, mesmo pequena,

entra na casa.

Consente na doçura, tem dó

da matéria dos sonhos e das aves.

 

Invoca o fogo, a claridade, a música

dos flancos.

Não digas pedra, diz janela.

Não sejas como a sombra.

 

Diz homem, diz criança, diz estrela.

Repete as sílabas

onde a luz é feliz e se demora.

 

Volta a dizer: homem, mulher, criança.

Onde a beleza é mais nova.

22
Fev
09

Eu ia com a noite pelas ruas

Eu ia com a noite pelas ruas

descuidadas que levam ao teu corpo.

Não sei que vozes se cruzaram

com a manhã de Junho dos meus olhos,

mas sempre vozes ou a sombra delas

cortaram os passos ao desejo.

Perdi-me em nevoeiros que de súbito

sobre a cidade caíram, ou em mim.

21
Fev
09

Ode a Guillaume Apollinaire

No meio dos anjos desembarcados em

Marselha,

nas margens do Sena, ao ouvido de Marie,

os olhos ardidos de ternura,

leio os teus versos, sem piedade de ti.

 

Leio os teus versos neste Outono breve

onde passeiam lentos com a água

Lou e Ottomar;

a esperança é ainda violenta,

mas estamos cansados de esperar.

 

Leio os teus versos no cemitério

onde as crianças indiferentes

brincam à roda da tua sepultura;

e choro, ao lado de Madeleine,

órfão de ti, órfão de aventura.

 

E tu passas, meu artilheiro,

apaixonadamente como um rio

ou touro de amor até aos cornos:

Orfeu cheirando a pólvora e a cio.

 

Passas, e seguem-te saltimbancos,

galdérias, vadios, ciganos e anões;

Annie – ou Jeanne – surge da bruma,

e de longe atira-te uma rosa,

talvez de lume, talvez de espuma.

 

Passas, e entras no paraíso

no meio de adolescentes tresmalhados;

Martin, Gertrude, Hans e Henri,

com ervas ainda nos cabelos

cantam coplas de putas e soldados.

 

Oh Madeleine, não tenhas piedade:

os mortos somos nós, aqui sentados,

com a noite nos ombros e embalando

a angústia nos braços decepados.

 

1949

 

 

Sobre Guillaume Apollinaire…

 

Poeta e crítico francês (1880- 1918), nascido em Roma, de nome verdadeiro Wilhelm Apollinaris de Kostrowitzky. Depois de uma infância e adolescência vividas entre vários países da Europa, instala-se em Paris a partir dos 20 anos, interessa-se por literatura e política e inicia a escrita novelas eróticas para sobreviver. Nos anos seguintes, viaja até à Áustria, Alemanha e Inglaterra. Entre 1902 e 1907 publica contos e poemas em várias revistas (incluindo a portuguesa O Portugal Futurista). Entre os seus amigos de Paris dessa altura, contam-se Picasso, Rousseau e Delaunay, entre outros.  Estreia-se como poeta em 1909, com o aparecimento da sua primeira colectânea, L’Enchanteur Pourrissant , cuja temática aludia ao aprisionamento do mago Merlim dentro de uma gruta, pelas artes mágicas de Morgana. Seguem-se, entre outras obras, Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée (1911) e Alcools (1914), trabalho marcado pela supressão de todos os sinais de pontuação, o que na época constitui uma inovação e revela o seu espírito modernista. Em 1914 alista-se no exército francês e parte para a guerra. Para não perder a veia poética, troca abundante correspondência com os amigos e a mais recente paixão não correspondida, Louise de Coligny-Châtillon (ou «Lou», como lhe chama nos poemas). Deois da guerra, volta ao trabalho em Paris: leva à cena a peça Les Mamelles de Tirésias (obra que anuncia o chegar do “Surrealismo”) e publica Calligrammes. Em 1918, casa com Jacqueline Kolb (a «linda ruiva» do último poema de Calligrammes), mas enfraquecido pela ferida de combate, morre em Novembro desse ano, de gripe espanhola. Tido como o criador do termo ‘surrealista’, tinha apenas trinta e oito anos por altura da sua morte. (fontes: assirio.com, infopedia.com)

 

 

 

 

20
Fev
09

Confiança

O que do fundo de alguns olhos vem tão azul à superfície destina-se a transformar o que em nós é apetência de morte no mais limpo e matinal voo de cotovia (6.1.86)

18
Fev
09

Sobre a terra

Sei que estou vivo e cresço sobre a terra.

Não porque tenha mais poder,

nem mais saber, nem mais haver.

Como lábio que suplica outro lábio,

como pequena e branca chama

de silêncio,

como sopro obscuro do primeiro crepúsculo,

sei que estou vivo, vivo

sobre o teu peito, sobre os teus flancos,

e cresço para ti.

 

17
Fev
09

Passamos pelas coisas sem as ver

Passamos pelas coisas sem as ver,

gastos como animais envelhecidos;

se alguém chama por nós não respondemos,

se alguém nos pede amor não estremecemos:

como frutos de sombra sem sabor

vamos caindo ao chão apodrecidos.

16
Fev
09

Arrepio na tarde

Não sei quem, nem em que lugar,

mas alguém me deve ter morrido.

Senti essa morte num arrepio da tarde.

Qualquer amigo, um dos vários

que não conheço e só a poesia

sustenta. Talvez a morte fosse

outra: um pequeno réptil

no sol súbito e quente de Março

esmagado por pancada certeira;

um cão atropelado por um bruto

que, ao volante, se julga um deus

de arrabalde, com sucesso garantido

junto de três ou quatro putas de turno.

Talvez a de uma estrela, porque também

elas morrem, também elas morrem.

 

NOTÍCIAS DA FUNDAÇÃO:

 

O poeta e crítico brasileiro Marcos de Morais estará no próximo dia 28, pelas 18h30, na Fundação Eugénio de Andrade para falar das tendências da poesia pernambucana recente. A entrada é livre.

 

15
Fev
09

Sílaba a sílaba

Eis sílaba a sílaba de uma cor perversa

o tempo quase nu para levar à boca.

 

Como se fora minha a respiração do trevo

alcanço a linha de água.

 

Habito onde o ar dói

                        as próprias mãos acesas.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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