Arquivo de Janeiro, 2009

31
Jan
09

Poema à mãe

No mais fundo de ti

eu sei que te traí, mãe.

 

Tudo porque já não sou

o menino adormecido

no fundo dos teus olhos.

 

Tudo porque ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais.

 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

 

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura.

 

Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos.

 

Mas tu esqueceste muita coisa;

esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!

 

Olha – queres ouvir-me? –

Às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;

 

ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;

 

Ainda oiço a tua voz:

era uma vez uma princesa

no meio do laranjal…

 

Mas – tu sabes – a noite é enorme,

e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.

 

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

 

30
Jan
09

Trago os tordos na cabeça

Trago os tordos na cabeça desde os campos

d’Atalaia para pôr neste poema –

o vento deixava-nos à porta

ora uma luz rasteira ora um esfarelado

chiar de carros de feno,

dos ramos altos

a tarde caía nos cabelos,

vivíamos sem pressa rente aos lábios.

28
Jan
09

Rosa do mundo

Rosa. Rosa do mundo.

Queimada.

Suja de tanta palavra.

 

Primeiro orvalho sobre o rosto.

Que foi pétala

a pétala lenço de soluços.

 

Obscena rosa. Repartida.

Amada.

Boca ferida, sopro de ninguém.

 

Quase nada.

27
Jan
09

O sorriso.

O sorriso.

O sorriso aberto

contra o muro.

 

Exactamente

como as ervas,

é muito antigo.

 

E sobre as ervas

e o muro

debruça-se no caminho.

 

Quem o arranca,

e levará consigo?

26
Jan
09

Assim despido

Rosto despido, magra fonte

dos dias – assim começa a breve

fala que escuto

 

vinda de longe, assim o nome

desse cristal,

o tão amado e perdido

 

olhar; assim do prado branco

as águas de junho

ou de setembro descem ao mar;

 

assim as dunas onde as aves

pousam leve ou nos lábios

o canto arde;

 

assim a neve.

25
Jan
09

Para onde?

Apesar da luz ter já começado a roer-me os olhos, não é ainda tempo para me entregar a coleccionar caixinhas de rapé ou luzes crepusculares, nem para fazer coro com essa gente do norte que recebe o nevoeiro em casa e o convida, pelo menos uma vez por semana, para jantar.

Desde a vulva inicial, o homem é só caminho. Para onde? Eis o que não sabemos. Mas será caso para perguntar?

24
Jan
09

Coração recente

Eras tu? Era o dia

acabado de nascer?

 

Que rosa abria? Rosa

ou ardor? Não seria

 

só desejo de ser

um travo de alegria?

 

Um fulgor? Um fluir?

Eras tu? Era o dia?

23
Jan
09

Soneto

Amor desta tarde que arrefeceu

as mãos e os olhos que te dei;

amor exacto, vivo, desenhado

a fogo, onde eu próprio me queimei;

 

amor que me destrói e destruiu

a fria arquitectura desta tarde

– só a ti canto, que nem eu já sei

outra forma de ser e de encontrar-me.

 

Só a ti canto que não há razão

para que o frio que me queima os olhos

me trespasse e me suba ao coração;

 

só a ti canto, que não há desastre

de onde não possa ainda erguer-me

para encontrar de novo a tua face.

22
Jan
09

O que não pode morrer

Diz, diz uma vez mais o que não pode

morrer:

a luz, que no sul é inocente

e trepa aos pinheiros;

o trote miúdo das manhãs de junho;

o azul a pique do falcão;

as dunas, com sinais ainda

de outro verão para levar à boca.

21
Jan
09

Quase madrigal

Os anjos que prometes são apenas

o rosto triste dos dias desolados.

Eu não prometo nada, sou alegria.

Aceito os anjos nos beijos que me dás,

pondo rosas nos teus dedos descuidados.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
Janeiro 2009
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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