Ele veio da planície, como se sabe. Veio da ondulação das searas, ininterrupta, até quando não há vento. Só muitos, muitos anos depois descobrirá dentro de si outra ondulação – a do mar, agora a dois passos de casa. Mar que nos entra pela varanda com o verão, ou podemos encontrar à porta, como se nos esperasse para uma carícia. É esta a surpresa que nos traz hoje esta pintura – o mar, o mar, o mar, de vaga em vaga. À ondulação do trigo, de que ainda há vestígios em várias telas, sucedeu a ondulação da espuma. Os ocres queimados cederam o passo aos azuis gloriosos. Os amarelos sombrios abriram-se à rebentação da cal. Espuma ou esperma, tanto faz – estas golfadas têm um destino: emprenhar a terra.
Continuo a pintar o Alentejo, diz-me ele. Mas agora um Alentejo de água, digo-lhe eu. Gosto desta fidelidade. A força de um artista vem-lhe do conhecimento dos seus limites. E os limites do homem são os da sua paixão, essa desmesura. Ser homem resolutamente, exigia Kierkegaard, o Desesperado. Não é tarefa fácil. Com júbilo no coração ou com um corpo ferido aos ombros, ser homem é difícil. Fiel à sua paixão. Resolutamente. Paixão à terra, a este horizonte raso, ondulante, entrando em espasmos sucessivos pelo corpo do mundo; indiferente a esse perverso refinamento que é apenas comprazimento na inteligência, e suas ligações aos círculos do poder, ou do mercado, de tão funestos frutos. Paixão ao corpo, à irradiação do corpo, à sensualidade magnificente do corpo, que transforma as formas da vida, mesmo as mais humildes, em apetência de luz, de mais luz ainda, última súplica do olhar.
Um dia ele conhecerá outra ondulação, a do silêncio. E será a perfeição.
In: À sombra da memória (1993)
Armando Alves, Paisagem (2009) - Óleo sobre tela (45 cm x 50 cm)