…viveu em tanta pobreza, que se não tivera um jau, chamado António, que da Índia trouxe, que de noite pedia esmola para o ajudar a sustentar, não pudera aturar a vida. Como se viu, tanto que o jau morreu, não durará ele muitos meses. Pedro de Mariz Devias estar aqui rente aos meus lábios para dividir comigo esta amargura dos meus dias partidos um a um — eu vi a terra limpa no teu rosto, só no teu rosto e nunca em mais nenhum. 27-12-79
Arquivo de Outubro, 2009
25
Out
09
Improviso para uma fonte
Boca da terra. Ao longe pressentida mas discreta. A quem te procura entregas-te aberta.
Neste "O lugar dos amigos" será dado espaço aos que melhor nos falam da vida de Eugénio - os seus colegas e amigos. Começaremos então pelo amigo Eduardo Lourenço. O texto chama-se "Adeus a Eugénio" e foi publicado no Jornal Público a 14 de Junho de 2005. A morte foi-lhe póstuma. Como para sublinhar que não lhe dizia respeito. Realíssima foi a sua longa agonia branca, o estar assistindo à sua vida sem poder fazer nada por ela. Nem nós, seus amigos, vendo o mais solar dos poetas a braços com esse crepúsculo sem manhã. Vivo e consciente, contemplou a última metamorfose, da sua própria margem, aquela que uma luminosa vida de versos lhe construíra como a única barca imune ao negro esquecimento. Aí permanecia o deus verde que sonhara o seu destino como quem dança. Sem anjos e sem pecado. Viera para inventar, cantando-se e encantando-se com o mundo, o seu próprio paraíso. Do reino das sombras, só soube da ausência da luz original que elas são. No cristal das palavras talhou o corpo dos poemas onde morria e ressuscitava. Todas lhe eram caras mas mais aquelas que precisavam dele para serem saboreadas pelos outros, as mais discretas, as mais duras no seu silêncio, as que tocadas por ele se convertiam em chama perpétua. As coisas mesmas, as mais banais, foram os seus símbolos. Elas lhe bastaram para deixar na memória poética da nossa língua aquela "espécie de música" a que Óscar Lopes aludiu. E é o sonho inalcançável de todo o poema. No círculo encantado que de Bernandim conduz a Pessanha, Eugénio instalou a sua tenda. Agora pode conversar de igual a igual com os seus astros tutelares. E concentrar-se inteiro na haste da melancolia que evocou para nós. Ave solar em plena luz. Vence, 13 de Junho de 2005 Eduardo Lourenço
20
Out
09
Um amigo é às vezes o deserto
Um amigo é às vezes o deserto, outras a água. Desprende-te do ínfimo rumor de agosto; nem sempre um corpo é o lugar da furtiva luz despida, de carregados limoeiros de pássaros e o verão nos cabelos; é na escura folhagem do sono que brilha a pele molhada, a difícil floração da língua. O real é a palavra.
18
Out
09
Sempre a água
Sempre a água me cantou nas telhas. Habito onde as suas bicas, as suas bocas jorram. As palavras que no cântaro a noite recolhe e bebe com agrado sabem a terra por serem minhas. Não sou daqui e não vos devo nada, ninguém poderá negar a evidência de ser chama ou água, fluir em lugar de ser pedra. Perdoai-me a transparência.
13
Out
09
Toar um corpo
Toar um corpo e o ar e a língua da neve. Toar a erva mortal e verde de cinco noites e ao mar. Um corpo nu. E as praias fustigadas pelo sol e pelo olhar.
08
Out
09
As mães
Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas termas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.
1987
07
Out
09
Chuva de Março
A chuva detrás dos vidros, a chuva de março, acesa até aos lábios, dança. Mas a maravilha não é a primavera chegar assim como se não fora nada, a maravilha são os versos de Williams sobre a rasteira e amarela flor da mostarda.
05
Out
09
Serão palavras
Diremos prado bosque primavera, e tudo o que dissermos é só para dizermos que fomos jovens Diremos mãe amor um barco, e só diremos que nada há para levar ao coração Diremos terra mar ou madressilva, mas sem música no sangue serão palavras só, e só palavras, o que diremos.