Posts Tagged ‘palavras

25
Jul
11

Soberania

Voltar, recomeçar – com que palavras? Um bando de ganapos ri, canta na esquina da rua. Gostaria de pensar que eu e essas vozes que chafurdam na noite se ignoram até ao osso. Mas não é assim: a vulgaridade desses sons atravessa as paredes; são, apesar dela, uma companhia. Habito um país sem memória – alguém sabe de lugar mais triste? É o tempo do tordo branco emigrar. Voltemos pois ao princípio. E o princípio são meia dúzia de palavras e uma paixão pelas coisas limpas da terra, inexoravelmente soberanas. Essas, onde a luz se refugia, melindrosa. Só elas abrem as portas aos sortilégios, e os sortilégios são diurnos, mesmo quando invocam a noite, e as águas do silêncio, e o indelével tempo sem tempo.

3.2.86

 

In: Vertentes do Olhar (1987)

29
Dez
10

No lume no gume

Vê como a nudez cresce.

Seria fácil pousar agora

no lume

ou no gume do silêncio

se houvesse vento:

mas quem se lembra do branco

aroma da alegria?

Reconheço no vagaroso

andar da chuva o corpo do amor:

vem ferido: nas suas mãos

como dormir?

Como enxotar a morte: esse animal

sonâmbulo dos pátios da memória?

Bago a bago podes colher

a noite: está madura:

podes levar à boca

a preguiçosa espuma

das palavras.

E crescer para a água.

In: Véspera da Água (1973)

25
Jul
10

Nas palavras

Respiro a terra nas palavras,

no dorso das palavras

respiro

a pedra fresca da cal;

respiro um veio de água

que se perde

entre as espáduas

ou as nádegas;

respiro um sol recente

e raso

nas palavras,

com lentidão de animal.

21
Fev
10

Glosa

Que voz se desprende,

hesita, tropeça?

Que pedras tacteia,

que ramos alcança?

Que fonte pressente?

Que rio procura?

Que ritmo persegue,

que palavras ama?

Que sombras repele,

que luzes derrama?

18
Out
09

Sempre a água

Sempre a água me cantou nas telhas.
Habito onde as suas bicas,
as suas bocas jorram.
As palavras que no cântaro
a noite recolhe e bebe
com agrado
sabem a terra por serem minhas.
Não sou daqui e não vos devo
nada, ninguém
poderá negar a evidência
de ser chama ou água,
fluir em lugar de ser pedra.
Perdoai-me a transparência.
05
Out
09

Serão palavras

Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens
 
Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração
 
Diremos terra mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.
24
Maio
09

Rumor do mundo

As palavras, vício
torpe, antigo.
As últimas? As primeiras?
Como os ouriços
abrem-se ao rumor do mundo:
o sol ainda verde dos limões,
os esquilos
de outras tardes, o latido
da chuva nas janelas,
os velhos em redor do lume
- nunca foram tão belas.
14
Maio
09

Surdo, subterrâneo rio

Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
 
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
28
Fev
09

Cristalizações

1

Com palavras amo.

 

2

Inclina-te como a rosa

só quando o vento passe.

 

3

Despe-te

como o orvalho

na concha da manhã.

 

4

Ama

como o rio sobe os últimos degraus

ao encontro do seu leito.

 

5

Como podemos florir

ao peso de tanta luz?

 

6

Estou de passagem:

amo o efémero.

 

7

Onde espero morrer

será manhã ainda?

15
Dez
08

Que fizeste das palavras?

Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
Maio 2024
S T Q Q S S D
 12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031  
“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

Blog Stats

  • 198.087 hits