Posts Tagged ‘lume

15
Maio
15

O lugar da casa

Uma casa que fosse um areal

deserto; que nem casa fosse;

só um lugar

onde o lume foi aceso, e à sua roda

se sentou a alegria; e aqueceu

as mãos; e partiu porque tinha

um destino; coisa simples

e pouca, mas destino:

crescer como árvore, resistir

ao vento, ao rigor da invernia,

e certa manhã sentir os passos

de abril

ou, quem sabe?, a floração

dos ramos, que pareciam

secos, e de novo estremecem

com o repentino canto da cotovia.

In: Sal da Língua (1995)

15
Nov
11

Coroa de lume

Ouço-o partir, o sol da mão.

O prazer do ofício,

a paciência de areia

abrindo para os caminhos do verão,

também eles a chegar

ao fim. Foi assim que partilhei

o pão, o tão amado

sopro vindo do sul.

Não tardará o sono: já

começou na fala.

É tempo de atirar aos cães

a coroa de lume.


In: Ofício de Paciência (1994)

31
Maio
11

Cardos

Este é o lugar onde só o lume

não demora a florir,

onde o verão abdica

de ser metáfora para arder

até ao fim.

 

In: O Outro Nome da Terra (1988)

13
Jan
11

Um simples pensamento

É a música, este romper do escuro.

Vem de longe, certamente doutros dias,

doutros lugares. Talvez tenha sido

a semente de um choupo, o riso

de uma criança, o pulo de um pardal.

Qualquer coisa em que ninguém

sequer reparou, que deixou de ser

para se tornar melodia. Trazida

por um vento pequeno, um sopro,

ou pouco mais, para tua alegria.

E agora demora-se, este sol materno,

fica comigo o resto dos dias.

Como o lume, ao chegar o inverno.

In: Os Sulcos da Sede (2001)

29
Dez
10

No lume no gume

Vê como a nudez cresce.

Seria fácil pousar agora

no lume

ou no gume do silêncio

se houvesse vento:

mas quem se lembra do branco

aroma da alegria?

Reconheço no vagaroso

andar da chuva o corpo do amor:

vem ferido: nas suas mãos

como dormir?

Como enxotar a morte: esse animal

sonâmbulo dos pátios da memória?

Bago a bago podes colher

a noite: está madura:

podes levar à boca

a preguiçosa espuma

das palavras.

E crescer para a água.

In: Véspera da Água (1973)

23
Maio
10

Ocultas águas

Um sopro quase,
Esses lábios.
 
Lábios? Disse lábios,
areias?
Lábios. Com sede
ainda de outros lábios.
 
Sede de cal.
Quase lume.
Lume
quase de orvalho.
 
Lábios:
ocultas águas.
05
Nov
09

Lume de Inverno

O lume. O lume rasteiro. O lume
ainda. Vem de tão longe. Da casa
térrea sobre a eira,
casa onde qualquer coisa pequena
pulsava: um coração,
a água no cântaro,
o trigo a crescer.
Era tão pequeno que nem sabia
como pedir uma laranja,
um pouco de pão.
Menos ainda, um beijo.
Parecia só saber
estender as mãos para aquele sol
rasteiro e para o olhar
que dos sortilégios do lume
o defendia.
16
Mar
09

Anunciação da primavera

São as primeiras frésias do ano:

vieram da Holanda

para que a primavera entrasse

em Janeiro pela casa dentro.

Com o seu aroma e o vento solar

farei o lume,

farei o lume onde aquecer as mãos

e de chama em chama regressar

às oliveiras do Sul lentas e claras,

ao azul estendido nas pedras nuas

da Cantareira,

aos pardais ardendo nos ramos

do crepúsculo com a luz derradeira.

04
Fev
09

Música mirabilis

Talvez a ternura

crepite no pulso,

talvez o vento

súbito se levante,

talvez a palavra

atinja o seu cume,

talvez um segredo

chegue ainda a tempo

 

– e desperte o lume.

17
Dez
08

O lugar da casa

Uma casa que nem fosse um areal

deserto; que nem casa fosse;

só um lugar

onde o lume foi aceso, e à sua roda

se sentou a alegria; e aqueceu

as mãos; e partiu porque tinha

um destino; coisa simples

e pouca, mas destino:

crescer como árvore,

ao vento, ao rigor da invernia,

e certa manhã sentir os passos

de abril,

ou, quem sabe?, a floração

dos ramos, que pareciam

secos, e de novo estremecem

com o repentino canto da cotovia.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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