Posts Tagged ‘corpo

10
Abr
14

Havia vento

Era um mês incerto, havia vento,

eu não teria nascido ainda,

ou já teria morrido.

A fronteira entre luz e sombra

era muito difusa. Então

estranhamente o sol pousou

naquele corpo. Corpo que nunca

vira despido, que cheirava

a maçãs maduras.,

com brilhos que desciam

às negras sementes da vida.

Estranhamente o sol demorou-se

nos seus ombros. Um último

brilho, ou suspiro, desprendeu-se.

O ar tremia – apesar disso eu era feliz,

tinha dez ou mil anos, já não sei.

 

In: Os Sulcos da Sede (2001)

22
Set
13

Na orla do mar

Na orla do mar,

no rumor do vento,

onde esteve a linha

pura do teu rosto

ou só pensamento

(e mora, secreto,

intenso, solar,

todo o meu desejo)

aí vou colher

a rosa e a palma.

Onde a pedra é flor,

onde o corpo é alma.

 

In: Até amanhã (1956)

06
Jun
12

O corpo vai-se esquecendo de ter razão

O corpo vai-se esquecendo de ter razão:

Deixa-te estar assim contra a vidraça,

pelos ombros caída

até ao chão a fatigada luz da sombra,

na mão o ínfimo azul de um lenço

de água. Ou menos ainda.

 

In: O Peso da Sombra (1982)

09
Mar
12

Deste modo ou de qualquer outro

A doçura da erva

alta

como cantar ao crepúsculo,

 

deste modo ou de qualquer outro,

cego

de procurar nos flancos

os vestígios do lume,

 

deixa-me dizer: quando a pedra

do verão era água

na tua boca

o meu nome era um barco,

 

sobre os ombros a

noite nua

no coração o rouxinol

da bruma,

 

éramos nós meu amor éramos nós,

ninguém nos via,

 

essa música

 

onde a terra respira.

 

In: Véspera da Água (1973)

05
Mar
12

Não, não é ainda a inquieta

Não, não é ainda a inquieta

luz de março

à proa de um sorriso,

nem a gloriosa ascensão do trigo,

 

a seda de uma andorinha roçando

o ombro nu,

o pequeno e solitário rio adormecido

na garganta;

 

não, nem o cheiro acidulado e bom

do corpo, depois do amor,

pelas ruas a caminho do mar,

ou o despenhado silêncio

 

da pequena praça,

como um barco, o sorriso à proa;

 

não, é só um olhar.

 

In: Branco no Branco (1984)

 

 

07
Dez
11

O sacríficio

Não gostaria de falar desse primeiro

encontro com as dificuldades do corpo.

Ou não seriam do corpo? Fora

do corpo haverá alguma coisa?

Foi há tantos anos, que espanta

que dure ainda na memória.

A extrema juventude guarda melhor

o tempo. Idade da flor, assim

lhe chamam. Idade de ser homem,

dizem também. O que é então

ser homem? Ou ser mulher?, se poderá

perguntar. Aqui, era ser homem: idade

de ir às putas. Entrava-se na sala

envergonhado, depois de se bater

à porta. Elas lá estavam; num salto

uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,

exclamou, olhando o cordeiro

do sacrifício. Ao fim, com dez escudos

pagavas o seres homem.

Não era caro, provares a ti mesmo

que pertencias ao rebanho.


In: Os lugares do lume (1998)

03
Maio
11

Limiar dos Pássaros

Ainda esta poeira sobre o coração

queria que chovesse sobre os ulmeiros

sair limpo desses olhos

da luz que se demora a polir os seixos

 

A corrosiva música das vogais que te devora

o silêncio do muro

às vezes quase azul

o verão afinal onde o ar é mais duro

 

Acordarás com as primeiras chuvas

a floração do trevo doía

o olhar sempre negado

aos cães da mote sempre prometido

 

Estende-te aqui

perto do oiro branco das cigarras

já tenho ouvido chegar o verão

a sua frágil quilha em águas quase mortas

 

A clara desordem dos cabelos

(dos cavalos não é ainda tempo)

a fundula da pupila

os lábios por dentro finalmente acesos

 

Tudo o mais te direi sobre o teu peito

à superfície uma poeira fresca

como quem escuta sobre a erva

as nascentes do fogo

 

Sem mácula não há luz sobre os joelhos

é um corpo de amor este que temos

até ao chão

da água mais exígua

 

Amar a boca fatigada do corpo

ou outra ainda mais estéril

entrar

onde o silêncio desce às fontes

 

Morrer e não morrer sobre os teus rins

uma árvore de pássaros ardia

era verão escuta os seus cavalos

à roda da cintura

 

O cálido esperma das palavras

no interior do cabelo derramado

um sol de palha fresca a boca

de que rio regressa?

 

Dessa cal de homem rompe a lua

de sol extenuada

ergue-se de gume em gume e cai

no espelho a prumo das espadas

 

Falar dizer de outra maneira

as labiais bebidas corpo a corpo

deambular pelas pernas pela boca

abandonar-me entre as pedras à poeira

 

Onde fluvial a meio da noite

cresce a pedra

branca dos álamos

as crianças dormem com os pássaros

 

Um corpo ao crepúsculo lido pelo vento

chama-se música

esta queda no escuro

rente ao murmúrio

 

Dizer como um rosto se extingue sem cessar

que farei deste nome que me sobra?

Eu tinha duas mãos que te queriam

grandes olhos de pássaro fulminado

 

Como dizer que vai morrendo

sobre pedras sem nome

la prima voce che passò volando

distante já da nossa idade?

 

Ninguém sabia de onde vinha

atravessara a noite do olhar

e o medo e o êxtase das espadas

o amor que é sempre argila branca

 (continua …)

In: Limiar dos Pássaros (1976)

17
Abr
11

Agora regresso à tua claridade

Agora regresso à tua claridade.

Reconheço o teu corpo, arquitectura

de terra ardente e lua inviolada,

flutuando sem limite na espessura

da noite cheirando a madrugada.

 

Acordaste na aurora, a boca rumorosa

dum desejo confuso de açucenas;

rosa aberta na brisa ou nas areias,

alta e branca, branca apenas,

e mar ao fundo, o mar das minhas veias.

 

Estás de pé na orla dos meus versos

ainda quente dos beijos que te dei;

tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa

– como no tempo em que tinha medo

que tropeçasses numa gota de água.

In: As palavras interditas (1951)

16
Jan
11

A um lodão da minha rua

Ninguém tem corpo mais fino,

nem braços tão delicados

como este lodão

crescendo com vigor à minha porta.

Tenho com ele desvelos de namorado,

limpo-o de ervas daninhas,

rego-lhe a terra ao calor de Agosto,

alegro-me a cada rebento novo,

cada folha recente. Cresce e cresce

em esplendor, certo de ser amado.

In: Rente ao Dizer (1992)

27
Jul
10

Dunas

É o mar do deserto, ondulação

sem fim das dunas,

onde dormir, onde estender o corpo

sobre outro corpo, o peito vasto,

as pernas finas, longas,

as nádegas rijas, colinas

sucessivas onde o vento

demora os dedos, e as cabras

passam, e o pastor

sonha oásis perto,

e o verde das palmeiras se levanta

até à nossa boca, até à nossa alma

com sede de outras dunas,

onde o corpo do amor

seja por fim um gole de água.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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