Posts Tagged ‘abril

15
Maio
15

O lugar da casa

Uma casa que fosse um areal

deserto; que nem casa fosse;

só um lugar

onde o lume foi aceso, e à sua roda

se sentou a alegria; e aqueceu

as mãos; e partiu porque tinha

um destino; coisa simples

e pouca, mas destino:

crescer como árvore, resistir

ao vento, ao rigor da invernia,

e certa manhã sentir os passos

de abril

ou, quem sabe?, a floração

dos ramos, que pareciam

secos, e de novo estremecem

com o repentino canto da cotovia.

In: Sal da Língua (1995)

26
Abr
15

O Sal da Língua comemora… Abril

O Sal da Língua comemora a liberdade e o 25 de Abril, sempre. Pela liberdade de mudar, de decidir, de escrever, de viver! Neste dia, a poesia de alguns poetas que tão bem traduziram o espírito da mudança que se impunha rumo às liberdades!

A Rapariga do País de Abril

Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.

E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.

Por ti cheguei ao longe aqui tão perto
e vi um chão puro: algarves de ternura.
Qaundo vieste tudo ficou certo
e achei achando-te o País de Abril.

Manuel Alegre
30 Anos de Poesia
Publicações Dom Quixote

Com que então libertos, hein?

Com que então libertos, hein? Falemos de política,
discutamos de política, escrevamos de política,
vivamos quotidianamente o regressar da política à posse de cada um,
essa coisa de cada um que era tratada como propriedade do paizinho.
Tenhamos sempre presente que, em política, os paizinhos
tendem sempre a durar quase cinquenta anos pelo menos.
E aprendamos que, em política, a arte maior é a de exigir a lua
não para tê-la ou ficar numa fúria por não tê-la,
mas como ponto de partida para ganhar-se, do compromisso,
um boa lâmpada de sala, que ilumine a todos.
Com o país dividido quase meio século entre os donos da verdade e do poder,
para um lado, os réprobos para o outro só porque não aceitavam que
não houvesse liberdade, e o povo todo no meio abandonado à sua solidão
silenciosa, sem poder falar nem poder ouvir mais que discursos de salamaleque,
há que aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política.
Não apenas pelo prazer tão grande de poder falar livremente
e poder ouvir em liberdade o que os outros nos dizem,
mas para o trabalho mais duro e mais difícil de — parece incrível —
refazer Portugal sem que se dissipe ou se perca uma parcela só
da energia represa há tanto tempo. Porque é belo e é magnífico
o entusiasmo e é sinal esplêndido de estar viva uma nação inteira.
Mas a vida não é só correria e gritos de entusiasmo, é também
o desafio terrível do ter-se de repente nas mãos
os destinos de uma pátria e de um povo, suspensos sobre o abismo
em que se afundam os povos e as nações que deixaram fugir
a hora miraculosa que uma revolução lhes marcou. Há que caminhar
com cuidado, como quem leva ao colo uma criança:
uma pátria que renasce é como uma criança dormindo,
para quem preparamos tudo, sonhamos tudo, fazemos tudo,
até que ela possa em segurança ensaiar os primeiros passos.
De todo o coração, gritemos o nosso júbilo, aclamemos gratos
os que o fizeram possível. Mas, com toda a inteligência
que se deve exigir do amadurecimento doloroso desta liberdade
tão longamente esperada e desejada, trabalhemos cautelosamente,
politicamente, para conduzir a porto de salvamento esta pátria
por entre a floresta de armas e de interesses medonhos
que, de todos os cantos do mundo, nos espreitam e a ela.

Jorge de Sena

SB, 2/5/1974

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

‘O Nome das Coisas’


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16
Fev
12

Entre março e abril

Que cheiro doce e fresco,

por entre a chuva,

me traz o sol,

me traz o rosto,

entre março e abril,

o rosto que foi meu,

o único

que foi afago e festa e primavera?

 

Oh cheiro puro e só da terra!

Não das mimosas,

que já tinham florido

no meio dos pinheiros;

não dos lilases,

pois era cedo ainda

para mostrarem

o coração às rosas;

mas das tímidas, dóceis flores

de cor difícil,

entre limão e vinho,

entre marfim e mel,

abertas no canteiro junto ao tanque.

 

Frésias,

ó pura memória

de ter cantado –

pálidas, fragrantes,

entre chuva e sol

e chuva

– que mãos vos colhem,

agora que estão mortas

as mãos que foram minhas?

 

In: Coração do Dia (1958)

18
Set
11

Estão sentados quase lado a lado

Estão sentados quase lado a lado

no chão à espera que passe um barco,

a luz muito quieta

no regaço

 

como se fora um gato, o sorriso

antigo, a casa

à beira do crepúsculo

atenta aos passos nas areias;

 

era outra vez Abril,

chovia no jardim, já não chovia,

um aroma, apenas um aroma,

tornava espesso o ar.

 

Uma criança me leva rio acima.

 

In: Contra a Obscuridade (1988)

28
Fev
11

Escuto o silêncio

Escuto o silêncio: em Abril

os dias são

frágeis, impacientes e amargos;

os passos

miúdos dos teus dezasseis anos

perdem-se nas ruas, regressam

com restos de sol e chuva

nos sapatos,

invadem o meu domínio de areias

apagadas,

e tudo começa a ser ave

ou lábios, e quer voar.

 

Um rumor cresce lentamente,

oh, lentamente

não cessa de crescer,

um rumor de pálpebras

ou pétalas

sobe de terraço em terraço,

descobre um dia

de cinzas com vestígios de beijos.

 

Um só rumor de sangue

jovem:

dezasseis luas altas,

selvagens, inocentes e alegres,

ferozmente enternecidas;

dezasseis potros

brancos na colina sobre as águas.

 

Como um rio cresce, cresce um rumor;

quero eu dizer,

assim um corpo cresce, assim

as ameixieiras bravas

do jardim,

assim as mãos,

tão cheias de alegria,

tão cheias de abandono.

 

Um rumor de sementes,

de cabelos

ou ervas acabadas de cortar,

um irreal amanhecer de galos

cresce contigo,

na minha noite de quatro muros,

no limiar da minha boca,

onde te demoras a dizer-me adeus.

 

Escreve um rumor: é só silêncio.

In: Ostinato Rigore (1964)

08
Mar
10

Abril

Brinca a manhã feliz e descuidada,

como só a manhã pode brincar,

nas curvas longas desta estrada

onde os ciganos passam a cantar.

Abril anda à solta nos pinhais

coroado de rosas e de cio,

e num salto brusco, sem deixar sinais,

rasga o céu azul num assobio.

Surge uma criança de olhos vegetais,

carregados de espanto e de alegria,

e atira pedras às curvas mais distantes

 – onde a voz dos ciganos se perdia.

15
Out
08

Às vezes

Às vezes oiço morrer o silêncio –

é o mar que se afasta,

um ramo que partiu com

o insuportável peso

 

do mundo sobre o verde das suas

folhas, o silvo da lua

nova rasgando o chão das águas

estremunhadas, a rouca

 

respiração da casa

sufocada pelo glacial

ar das ruas, os passos de Abril

descendo os últimos degraus.

19
Abr
08

Acerca de gatos

Em abril chegam os gatos: à frente

o mais antigo, eu tinha

dez anos ou nem isso,

um pequeno tigre que nunca se habituou

às areias do caixote, mas foi quem

primeiro me tomou o coração de assalto.

Veio depois, já em Coimbra, uma gata

que não parava em casa: fornicava

e paria no pinhal, não lhe tive

afeição que durasse, nem ela a merecia,

de tão puta. Só muitos anos

depois entrou em casa, para ser

senhor dela, o pequeno persa

azul. A beleza vira-nos a alma

do avesso e vai-se embora.

Por isso, quem me lambe a ferida

aberta que me deixou a sua morte

é agora uma gatita rafeira e negra

com três ou quatro borradelas de cal

na barriga. É ao sol dos seus olhos

que talvez aqueça as mãos, e partilhe

a leitura do Público ao domingo.




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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