Archive for the 'Véspera da Água (1973)' Category

12
Jun
13

Labirinto ou Alguns Lugares do Amor

O outono
por assim dizer
pois era verão
forrado de agulhas

a cal
rumorosa
do sol dos cardos

sem outras mãos que lentas barcas
vai-se aproximando a água

a nudez do vidro
a luz
a prumo dos mastros

os prados matinais
os pés
verdes quase

o brilho
das magnólias
apertado nos dentes

uma espécie de tumulto
as unhas
tão fatigadas dos dedos

o bosque abre-se beijo a beijo


e é branco.

In: Véspera de Água (1973)

09
Mar
12

Deste modo ou de qualquer outro

A doçura da erva

alta

como cantar ao crepúsculo,

 

deste modo ou de qualquer outro,

cego

de procurar nos flancos

os vestígios do lume,

 

deixa-me dizer: quando a pedra

do verão era água

na tua boca

o meu nome era um barco,

 

sobre os ombros a

noite nua

no coração o rouxinol

da bruma,

 

éramos nós meu amor éramos nós,

ninguém nos via,

 

essa música

 

onde a terra respira.

 

In: Véspera da Água (1973)

08
Ago
11

É um sopro

É um sopro de animal ferido

entrar dentro de ti – o tempo só

da luz atravessar

a sombra lancinante da cintura.

17
Maio
11

Frases

No verão inocente dos joelhos

 

à entrada da noite

como se a luz doesse

 

entre o desejo

e o espasmo lentíssimo relâmpago

 

a mão.

 

In: Véspera da Água (1973)

29
Dez
10

No lume no gume

Vê como a nudez cresce.

Seria fácil pousar agora

no lume

ou no gume do silêncio

se houvesse vento:

mas quem se lembra do branco

aroma da alegria?

Reconheço no vagaroso

andar da chuva o corpo do amor:

vem ferido: nas suas mãos

como dormir?

Como enxotar a morte: esse animal

sonâmbulo dos pátios da memória?

Bago a bago podes colher

a noite: está madura:

podes levar à boca

a preguiçosa espuma

das palavras.

E crescer para a água.

In: Véspera da Água (1973)

18
Abr
10

Em cada folha

Esta inocência de água

pede-te ardor

mais verde em cada folha

brancura

onde a onda quebrada

vertigem nua.

11
Abr
10

É um dizer

Estende um pouco mais a mão

recolhe um a um os sinais do desejo

fogo de abelhas o sexo

espera a insurreição da cal

a espessa ondulação do vento

é sobre um corpo a própria exaltação

morrer nos flancos do amor é um dizer

repara como brilham os limoeiros

28
Set
09

Sobre a palavra

Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece.
 
Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama.
 
Assim se morre dizias tu.
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a
cintura.
 
Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada.
 
Interminavelmente.
29
Jun
09

Sobre flancos e barcos

Havia ainda outro jardim o da minha vida
exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães não sei
é sempre a mesma inquietação
 
este delírio branco ou o rumor
da chuva sobre flancos e barcos
o Inverno vai chegar
na palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem
 
era o sopro distante das manhãs sobre o mar
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar.
22
Maio
09

Sobre um corpo

Sobre o teu corpo caio
daquele modo que o verão tem de espalhar os
            cabelos
na água esparsa dos dias
e faz das peónias uma chuva de oiro
ou a mais incestuosa das carícias.



"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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