Archive for the 'Os Lugares do Lume (1998)' Category

10
Mar
14

De ramo em ramo

O branco do linho ou dos muros

do sul,

o carmim matutino,

 

o claro azul mediterrâneo, o limão

húmido ainda,

o laranja, o verde das oliveiras

 

prateado, o amarelo exausto

da glória, o violeta adormecido

da flor que lhe dá um nome,

 

o ocre do trigo ceifado,

o negro quase

materno da terra lavrada,

 

é nos olhos que são ave

de ramo em ramo concertada.

 

In: Os Lugares do Lume (1998)

19
Ago
12

O unicórnio

É o mais solitário, o mais esquivo,

o mais sonhador dos animais,

o unicórnio – a cadência dos versos

guiando-lhe os passos. Alguns

dizem tê-lo avistado ao crepúsculo

da noite, aproximando-se apenas

de raparigas e rapazes virgens

ainda. Não sei de quem o tenha

acariciado. Há os que pensam ser,

graças ao corno desmesurado

e afrontoso da sua virilidade,

encarnação do demónio. Talvez por isso,

os homens mal lhe pressentem o cheiro

atiçam-lhe raivosos os seus cães.


In: Os lugares do lume (1998)

07
Dez
11

O sacríficio

Não gostaria de falar desse primeiro

encontro com as dificuldades do corpo.

Ou não seriam do corpo? Fora

do corpo haverá alguma coisa?

Foi há tantos anos, que espanta

que dure ainda na memória.

A extrema juventude guarda melhor

o tempo. Idade da flor, assim

lhe chamam. Idade de ser homem,

dizem também. O que é então

ser homem? Ou ser mulher?, se poderá

perguntar. Aqui, era ser homem: idade

de ir às putas. Entrava-se na sala

envergonhado, depois de se bater

à porta. Elas lá estavam; num salto

uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,

exclamou, olhando o cordeiro

do sacrifício. Ao fim, com dez escudos

pagavas o seres homem.

Não era caro, provares a ti mesmo

que pertencias ao rebanho.


In: Os lugares do lume (1998)

26
Mar
11

Alguém com nome

Agora vou falar da preguiçosa e fina

névoa entre os olhos e o rio.

Às vezes passava um barco.

Era como um arado lavrando

no meu coração a terra morta.

À proa o vento salgado dos pinhais.

Não sei para onde ia.

Devia haver em qualquer parte

um porto para o seu desassossego,

alguém de olhar molhado no cais

à sua espera. Numa cidade

pequena do Norte. Alguém

com nome, talvez Kai, os lábios

mordidos pelo vento, Kai

Haagen, no porto de Göteborg,

na costa da Suécia. Adeus, adeus.

In: Os Lugares do Lume (1998)

13
Fev
11

Luz recente

Respiras com cautela a luz

recente.

Deve ter acordado: canta.

Anos e anos adormecida

no fundo da pupila.

Já nem te lembravas

que fora assim tão jovem

e tinha

o nome da alegria.

Agora canta. Canta

em surdina.

In: Os Lugares do Lume (1998)

07
Set
10

Coral

É um dos corais de Leipzig,

o quarto. Sem sabermos como, desceu

ao chão da alma. A música

é este abismo, esta queda

no escuro. Com o nosso corpo

tece a sua alegria,

faz a claridade

dos bosques com a nossa tristeza.

Pela sua mão conhecemos a sede,

o abandono, a morte. Mas também

o êxtase de estrela em estrela.

E a ressurreição.

 

In: Os Lugares do Lume (1998)

22
Jun
10

Canção da mãe de um soldado de partida para a Bósnia

É muito jovem, sem tempo ainda

de ser triste. Demora-se nos meus olhos

enquanto leva a maçã à boca.

Nenhuma fala obscura escurece a tarde,

a cabeleira solta é a sua bandeira;

os pés brancos, irmãos

da chuva de verão, anunciam a paz.

Suplico à estrela da manhã

que lhe guie os passos, agora que partiu;

que tenha em conta a sua ignorância,

não só da morte, também da vida.

01
Mar
10

A teia

As cigarras,

a brusca rouquidão da cal,

a surda rebentação dos cardos,

tudo o que faz o verão subir a prumo

chegou ao fim.

O frio, a sua teia branca,

lembra-te, não tardará.

09
Jan
10

Ardendo na sombra

Tu estavas ali,
perto da laranjeira.

(Porque havia
uma laranjeira ao lado
da casa.)

Estavas ali, as mãos
iluminadas.
A luz vinha dos frutos
ardendo na sombra.

A laranjeira
ainda lá se encontra.
E tu? Ainda aí estás?

Ao longe erguia-se a poeira
quando o rebanho
ao fim da tarde
passava – era verão.

Só no verão
a poeira se levanta assim
sem haver vento.

No tanque, um fio débil
de água
servia para nos sentarmos
à beira do seu rumor.

Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Essa tristeza é ainda
minha.

Mas só ela.
E a laranjeira.
02
Nov
09

A casa

Nem sempre a luz vem assim:
salta como um rapaz muro após muro,
entra pela janela.

O brilho dos medronhos chega ao fim:
extrema ponta dos dias,
aproximação da água.

Dia feito para a música, dizias;
ou para a dança, acrescentavas:
ritmo puro, sustido.

De muro em muro, sem nenhum peso,
entra pela casa.
Agora é ela que dorme comigo.



"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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