Creio que me não é possível, nesta altura, falar de Júlio Resende senão autobiograficamente. Venho de sair de uma clínica onde desci ao inferno do corpo, e o regresso foi lento, e mais lento teria sido sem a ajuda dos amigos. Mas à medida que os olhos se deixavam atravessar pela luz, cada fibra do mais humano tecido da vida aspirava a perpetuar-se. Tudo existia com uma intensidade gloriosa; o contorno de cada coisa – jarra, livro, nuvem – era de uma energia e concisão caligráficas; os primeiros caldos, onde a cor fulva da cenoura me fascinava, o primeiro pão com manteiga, parecia-me saboreá-los verdadeiramente pela primeira vez; e aquela música, a valsa d’O Cavaleiro da Rosa (“Comigo, comigo, nenhuma noite será longa para ti”), que vinha de captar no radiozito portátil, de repente caía-me em cima, arrastava-me na assumpção de uma beleza excessiva, quase insuportável. Mas também o gesto mais simples, uma festa na mão, o toque de carinho no nariz, que tanto podia vir de um amigo como de um clínico que, chamado de urgência, me via pela primeira vez, tudo isso era um prazer novo que, às golfadas, me devolvia à vida.
Sempre escolhera os amigos pela gentileza, e ali estavam os sinais: a presença penetrante dos lilazes, cuja simplicidade e fragância vinha dos pátios caiados do sul; o vermelhão das rosas, a trazer-me à memória um soneto de Shakespeare, provavelmente escrito para o conde de Southampton, e cujo retrato, num medalhão antigo, iria encontrar num catálogo do Fitzwilliam Museum, presente doutro amigo. Mas este albúm ia trazer-me um prazer inesperado, o de poder contemplar a reprodução da Chávena Branca e Colher de Fantin-Latour. Olhava a cor leitosa da porcelana, tão semelhante à dos lírios que, na jarra, enchiam o quarto de brilhos surdos, pintada com o pudor e a sabedoria dos mestres holandeses do séc. XVI, e era como se o tempo se imobilizasse, até os olhos cumprirem a sua tarefa: dar corpo e alma àquela forma humilde, que parecia não ter outro sentido que estar ali para a levarmos à boca. Às vezes, os pequenos mestres estão destinados a dar-nos alegrias inultrapassáveis. Vou por certo escandalizar muita gente: eu não trocava esta chávena com a colherita de prata pousada no pires pelo grande retrato de Rubens (Cabeça de Homem com Barba) que o mesmo catálogo reproduz, e que reconheço ser uma das mais belas cabeças (com barba ou sem ela) do mestre flamengo.
Entre os presentes que os amigos trouxeram encontravam-se dois catálogos das últimas exposições de Resende. E a minha atenção, ao folheá-los, foi para a reprodução de um quadro recente, exposto com obras anteriores, Saldos. Quando era jovem, Braque dizia: “Amo a regra que corrige a emoção”; mas quando, passados anos, a mão lhe foi secando, virou a fórmula para “Amo a emoção que corrige a regra”. É este último aforismo que me ocorre em presença das actuais telas do meu amigo. Diante desta pintura, tão etérea e musical, tão solta e juvenil, tão confiante e desprendida, interrogo-me como é possível, depois de setenta anos, pintar desta maneira. As ideias, aqui, vão-se apagando; é o instinto que guia a mão, educada por anos e anos de trabalho paciente e calado. Fazer, fazer seja o que for, não largar os pincéis, não abandonar a esferográfica, trabalhar com o coração ou com a inteligência, ou preferentemente com ambos, mas trabalhar, escavar dentro de si, como aconselhava Marco Aurélio, fazer coisas com essa energia que nos sobe pelos pés quando pisamos terra estreme, ou entra pelos olhos quando os molhamos na espuma das pequenas vagas, que nem vagas são, mas ondas levíssimas, empurradas pelo sopro dos nossos lábios; fazer com o corpo todo essa melodia que sobe, sobe e se transforma em nuvem, e outra nuvem ainda, qual delas a mais branca, a mais azul; ou no grito convulsivo dos pavões, buscando um pouco de água fresca para a nossa testa febril, pois como diz Yeats:
Todas as coisas tombam e são construídas de novo
E os que as constroem outra vez são felizes.
E aqui está Resende – aos setenta anos voltou a gostar de cores pueris: amarelos-damasco, verdes-ameixa, rosas de rapariga impúbere; espalha-as pela tela num abandono que não é negligência, numa alegria de quem sabe, como Nietzsche, que o que é bom é leve. O contorno vai-se anulando na luz, e nesses trapos expostos em montras, ou pousados nos ombros de quem as contempla, não saberemos nunca quem está dentro ou está fora, porque não há dentro nem fora, ou então o fora é o dentro e o dentro é o fora – às vezes, as figuras cansam-se de representar sempre o mesmo papel e então trocam: “Agora vais tu lá para dentro fazer de bailarina”, diz o manequim à mulher que passou horas a contemplar a noiva de braços erguidos, como se dissesse adeus à sua própria juventude. Pintar é descobrir esta alegria, esta liberdade. As telas de Resende são agora portas abertas por onde entra o tempo mais inocente. O tempo e os gatos. Eles passaram a manhã de domingo em cima do telhado, a cumprir uma lei que alguns têm por divina: crescei e multiplicai-vos. Eram oito machos e uma só fêmea. E não perdem tempo: durante a manhã inteira, apenas com brevíssimos intervalos para se lamber, ela consentiu que os oito gatos, um a um, lhe fossem saltando para cima, os dentes cravados no cachaço, metida no seu canto, sem esboçar sequer um gesto de fuga, a messalina. Agora estão ali no jardim, a menina tentando abraçá-los todos ao mesmo tempo; impossível; mas vai acariciando os que estão mais próximos, e está feliz. Tenho pena que o Resende não tenha conhecido o meu persa azul. Tê-lo-ia levado para o seu quadro, e a menina certamente o escolheria entre todos para amar. “É um poema”, disse dele um amigo meu. É certo, mas um poema que ninguém, nem mesmo Baudelaire, seria capaz de escrever, porque uma perfeição assim não poderia sair das mãos de nenhum homem.
Resende e eu somos contemporâneos. Não sei se ele tem orgulho nisso – eu tenho, e gosto desta contemporaneidade, que compartilho com mais três ou quatro amigos que dividiram comigo alguns dos seus dias: o Carlos de Oliveira, o Eduardo Lourenço, a Maria Agustina, o Jorge de Sena, o Mário Cesariny. Um bom pedaço do nosso tempo português vai-lhes pertencer, ninguém tenha dúvidas. Alguns deles são sôfregos, outros são mais comedidos, não pretendem na sua sede esgotar as fontes. Resende é dos que se afastam da bica para outros beberem. Ele sabe, como eu, que o mundo tem criaturas em puro estado de graça: antes de mais as crianças, os animais, as árvores. Eu fico-me por aqui, mas ele é mais generoso: gosta de alguns pobres-diabos que o demónio pôs à prova – os pastores do Alentejo, os vagabundos do Porto, os pescadores da Póvoa. Eu já nem por esses dou um vintém, mas ele pinta-os com imensa piedade. Reparai nessa velha sentada no jardim, enquanto as crianças correm atrás dos pombos ou ao desafio com os cães. Uma delas debruça-se no lago e a pobre mulher estremece. Mas já passou o perigo, já a rapariguita se levanta, depois de ter contemplado o rosto nas águas tranquilas do verão, e se junta às outras, numa correria que só terminará ao anoitecer, quando a mãe, regressada do trabalho, a vem chamar para casa, onde não apetece estar, e menos ainda dormir, tanto é o calor, tão grande é a solidão.
Mas não só as velhas habitam estes quadros. Num deles, Espelhos, encontrareis algumas raparigas, em trajes leves aderentes ao corpo, sem contudo deixarem adivinhar a carne jovem e palpitante. São cinco, e a única presença masculina é o gato. Nenhuma delas se preocupa com ele, estão absorvidas com o seu próprio fulgor – na verdade, irradiam uma luz de fruto silvestre. Estão contentes: sentem-se jovens, formosas, talvez amadas, ou pelo menos desejadas. Por contraste, vem-me à lembrança Les Demoiselles d’Avignon. Aqui ninguém está prestes a deixar tombar a túnica e, num relâmpago, mostrar o corpo feliz. Que faz o bicho ali, naquele lugar onde acabará por ficar sozinho, pois as raparigas não tardarão a enfiar o vestido e sair, os espelhos abandonados ao silêncio surdo da sala? Vejo uma delas atravessar um jardim, parar e contemplar os pombos, espiando pelo rabinho do olho o rapaz que, sentado num banco, fechou o livro e contempla aquele corpo sem marcas de sofrimento, ou de renúncia, ou de noites mal dormidas com amores de passagem. Ela trouxe consigo algum milho, os pombos esvoaçam rápidos a envolvê-la – é uma bela manhã de Março, as japoneiras estão carregadas de flores vermelhas. “Como os seus lábios”, pensa o rapaz. E regressa ao livro. É estranhamente um livro com linhas poucas e curtas, com muito espaço branco à roda, um enorme desperdício de papel, pois em toda a página há apenas indícios escassos de sílabas:
Longamente
em sonhos falei com Afrodite.
Justamente com Afrodite nunca esta pintura fala. Não me lembro de ter visto um nu de Resende, seja feminino ou masculino, tanto monta. Mas também as paisagens são raríssimas nele. Só a figura humana, com o seu destino às costas, lhe prende o olhar. E é raro que tal destino não seja precário ou grotesco – e não sei qual deles é mais triste. Olhai as mulheres dessa tela a que o pintor chamou Perucas, e dizei-me. Por isso nos são tão preciosos os seus instantes de alegria.
Falei desta pintura com desenfadada liberdade – rigorosamente aquela com que algumas destas telas foram pintadas.
In: À Sombra da Memória (1993)