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12
Set
14

Que voz lunar?

 Que voz lunar insinua

o que não pode ter voz?

 

Que rosto entorna na noite

todo o azul da manhã?

 

Que beijo de oiro procura

uns lábios de brisa e água?

 

Que branca mão devagar

quebra os ramos do silêncio?

 

In: Mar de Setembro (1961)

10
Set
14

Rosto afogado

Para sempre um luar de naufrágio

anunciará a aurora fria

Para sempre o teu rosto afogado,

entre retratos e vendedores ambulantes,

entre cigarros e gente sem destino,

flutuará rodeado de escamas cintilantes.

 

Se me pudesse matar,

seria pela curva doce dos teus olhos,

pela tua fronte de bosque adormecido,

pela tua voz onde sempre amanhecia,

pelos teus cabelos onde o rumor da sombra

era um rumor de festa,

pela tua boca onde os peixes se esqueciam

de continuar a viagem nupcial.

Mas a minha morte é este vaguear contigo,

na parte mais débil do meu corpo,

com uma espinha de silêncio

atravessada na garganta.

 

Não sei se te procuro ou se me esqueço

de ti quando acaso me debruço

nuns olhos subitamente acesos

ao dobrar de uma esquina,

na boca dos anjos embriagados

de tanta solidão bebida pelos bares,

nas mãos levemente adolescentes

pousadas na indolência dos joelhos.

Quem me dirá que não é verdade

o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,

de sombra em sombra, nas ruas da cidade?

 

Ninguém te conheceu,

ninguém viu romper a luz na tua cama,

ninguém sabe, nnguém,

que o teu corpo, continente selvagem,

se desvelava por uma pedra branca

atirada contra o nevoeiro.

 

Por isso escrevo esta elegia

como quem oferece a luz dos olhos;

por isso canto o teu rosto afogado

como quem canta um funeral de espigas.

 

In: As Palavras Interditas (1951)

08
Set
14

Foi para ti que criei as rosas

Foi para ti que criei as rosas.

Foi para ti que lhes dei perfume.

Para ti rasguei ribeiros

e dei às romãs a cor do lume.

 

Foi para ti que pus no céu a lua

e o verde mais verde nos pinhais.

Foi para ti que deitei no chão

um corpo aberto como os animais.  

 

In: As Mãos e os Frutos (1948)

24
Ago
14

Tarde ferida

Que mar a pique

ou luz,

ausente e quente,

na boca tão intensa

que fere a tarde?

 

In: Coração do dia (1958)

06
Jul
14

O Sal da Língua comemora (hoje e sempre) Sophia

O Sal da Língua comemora a poesia de Sophia de Mello Breyner, no mês em que se completam 10 anos desde o seu desaparecimento (no dia 2 de julho de 2004). Numa publicação passada, datada de 30 de janeiro de 2011, tinha sido publicado neste blogue um poema feito pelo Eugénio e dedicado à poetisa Sophia, aproveito para relembrar esse poema e para deixar o manuscrito em que este foi escrito, pelo próprio Eugénio. Deixo também uma fotografia de Eugénio de Andrade com a poetisa e a escritora Agustina Bessa Luís, datada dos anos 50, e uma foto de Sophia com Eugénio e vários outros escritores e poetas portugueses.

Não sei porque floriram no meu rosto

os olhos e os rostos que há em ti.

Floriram por acaso, ao sol de agosto

sem mesmo haver agosto ou sol em mim.

Não sei porque floriram: se o orvalho as queima

(Ponho as mãos nos olhos para os proteger!)

Tão estranho! florirem no meu rosto

olhos e rostos que não posso ver.

Eugénio de Andrade, Fevereiro de 1946

 

Carta de Eugénio de Andrade com «Poema / para a Sofia Andresen», assinado e datado «Fev. 46»

Carta de Eugénio de Andrade com «Poema / para a Sofia Andresen», assinado e datado «Fev. 46» (Fonte: http://purl.pt/19841/1/galeria/textos/f11/foto1.html)

Sophia com Agustina Bessa-Luís e Eugénio de Andrade. Anos 50

Sophia com Agustina Bessa-Luís e Eugénio de Andrade. Anos 50 (Fonte: http://purl.pt/19841/1/1950/1950-2.html)

Sophia com amigos, na Casa de Mateus, anos 80. De trás para a frente e da esquerda para a direita: Andrée Rocha, Vasco Graça Moura, Miguel Torga, Graça Seabra Gomes, Alberto Pimenta; Eugénio de Andrade, Sophia, Pedro Tamen, Helena Vaz da Silva; Alexandre O’Neill, Clara Rocha, Fernando Guimarães; Fernando Albuquerque, M. de Lourdes Guimarães, (?), Francisco Sousa Tavares, (?)

Sophia com amigos, na Casa de Mateus, anos 80. De trás para a frente e da esquerda para a direita: Andrée Rocha, Vasco Graça Moura, Miguel Torga, Graça Seabra Gomes, Alberto Pimenta; Eugénio de Andrade, Sophia, Pedro Tamen, Helena Vaz da Silva; Alexandre O’Neill, Clara Rocha, Fernando Guimarães; Fernando Albuquerque, M. de Lourdes Guimarães, (?), Francisco Sousa Tavares, (?) (Fonte: http://purl.pt/19841/1/1980/galeria/f12/foto1.html)

 

 

15
Jun
14

Disssonâncias

Pedra a pedra

a casa vai regressar.

Já nos ombros sinto o ardor

da sua navegação.

 

Vai regressar

o silêncio com as harpas.

As harpas com as abelhas.

 

No verão morre-se

tão devagar à sombra dos ulmeiros!

 

Direi então:

Um amigo

é o lugar da terra

onde as maçãs brancas são mais doces.

 

Ou talvez diga:

O outono amadurece nos espelhos.

Já nos meus ombros sinto

A sua respiração.

Não há regresso: tudo é labirinto.

 

In: Obscuro Domínio (1972)

14
Jun
14

13 de junho. 9 anos do desaparecimento de Eugénio

Ontem assinalou-se mais um ano do desaparecimento de Eugénio de Andrade, que voou com as aves há precisamente 9 anos, a 13 de junho de 2005, no mesmo dia do escritor Álvaro Cunhal. Neste dia e ano também se assinalaram os 17 anos do desaparecimento do poeta Al Berto e os 126 anos do nascimento do imenso Fernando Pessoa.

Na Biblioteca Municipal Eugénio de Andrade, no Fundão,  lançaram-se ontem dois livros sobre o poeta: “Eugénio de Andrade: Uma Vida Por Um Só Verso”, de António Oliveira, um investigador, doutorado em Literatura, que fez diversos estudos sobre a poesia em geral e que fez várias comunicações sobre Eugénio de Andrade, tendo inclusive publicado dois ensaios sobre o poeta, evoca a vida e poesia de Eugénio e “O Génio de Andrade”, de Arnaldo Saraiva, que reúne um conjunto de ensaios inéditos de Arnaldo Saraiva sobre o poeta nascido na Póvoa de Atalaia.

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A Biblioteca Municipal do Porto, cidade onde o poeta viveu, dinamiza na data de hoje, 14 de junho, o percurso cultural “O Porto de Eugénio”, do Jardim de São Lázaro até ao Campo 24 de agosto, parando nalguns pontos para a leitura de poemas de Eugénio dedicados à cidade onde viveu por mais de 40 anos.

 

18
Maio
14

O Sal da Língua comemora… Vasco Graça Moura

O Sal da Língua comemora a poesia de Vasco Graça Moura, que partiu no mês passado, aos 72 anos de idade, mas que nos deixou de herança um património riquíssimo entre o qual figura a poesia.

Nada melhor, para homenagear o poeta no Sal da Língua, que:

– uma fotografia divulgada pelo Jornal Público (edição Porto de dia 28 de abril de 2014), em que figura ao lado de outros queridos poetas portugueses: Pedro Tamen,Alberto Pimenta, Alexandre O’Neill, Miguel Torga e o nosso Eugénio de Andrade.

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– um dos seus muitos poemas, lamento por diotima (In Poesia, 1963-1995, Círculo de Leitores, 2001, p. 402).

o que vamos fazer amanhã
neste caso de amor desesperado?
ouvir música romântica
ou trepar pelas paredes acima?
amarfarnhar-nos numa cadeira
ou ficar fixamente diante
de um copo de vinho ou de uma ravina?
o que vamos fazer amanhã
que não seja um ajuste de contas?
o que vamos fazer amanhã
do que mais se sonhou ou morreu?
numa esquina talvez te atropelem,
num relvado talvez me fuzilem,
o teu corpo talvez seja meu,
mas o que vamos fazer amanhã
entre as árvores e a solidão?
– e umas palavras do escritor e amigo Eduardo Pitta publicadas no seu blogue Da Literatura aquando da sua morte:
“Mesmo esperada, a morte de um amigo é sempre intolerável. Vasco Graça Moura morreu hoje (27 de abril) de manhã. Tinha 72 anos. Poeta, ensaísta, ficcionista e tradutor, deixa uma obra que marca o século XX português. Actual presidente da Fundação Centro Cultural de Belém, Graça Moura ocupou nos últimos quarenta anos diversos cargos institucionais. Duas vezes secretário de Estado, primeiro da Segurança Social, depois dos Retornados (nos 4.º e 5.º governos provisórios, respectivamente); director de programas da RTP; presidente da Imprensa Nacional / Casa da Moeda (a ele se devendo a edição portuguesa, em 41 volumes, da enciclopédia Einaudi); presidente da Comissão Executiva das Comemorações do Centenário de Fernando Pessoa; comissário-geral de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha; presidente da Comissão Nacional dos Descobrimentos (1988-95); director da revista Oceanos; director da Fundação Casa de Mateus; membro do conselho-geral da Comissão Nacional da UNESCO; director do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian (1996-99) e também consultor da FLAD. Deputado ao Parlamento Europeu durante dez anos (1999-2009), eleito nas listas do PSD. Além de diversos prémios literários, em Portugal e no estrangeiro, recebeu em 1995 o Prémio Pessoa. Há três meses foi-lhe outorgada a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada. Homem de convicções fortes, à Direita, nunca se preocupou com a ideologia dos seus pares.
Várias vezes compilada, a obra poética [1962-2010] encontra-se disponível em dois volumes que a Quetzal publicou em Outubro de 2012 com o título de Poesia Reunida. Escrevi muito sobre ela, não me vou repetir. Graça Moura publicou ainda seis romances, dezenas de volumes de ensaio e dois de crónicas. Entre outros, traduziu Dante — A Divina Comédia entrou no património da língua portuguesa —, Petrarca, Shakespeare (os sonetos), Ronsard, Villon, Corneille, Molière, Racine, Rilke, Lorca, Enzensberger, Gottfried Benn, Seamus Heaney e Tomas Tranströmer. Foi o mais consistente opositor do Acordo Ortográfico de 1990, tema a que dedicou o ensaio Acordo Ortográfico: a Perspectiva do Desastre (2008), que publiquei neste blogue antes da sua impressão em volume. À família e, em particular, a Maria Bochicchio, apresento condolências. Até sempre, Vasco.”

 

10
Abr
14

Havia vento

Era um mês incerto, havia vento,

eu não teria nascido ainda,

ou já teria morrido.

A fronteira entre luz e sombra

era muito difusa. Então

estranhamente o sol pousou

naquele corpo. Corpo que nunca

vira despido, que cheirava

a maçãs maduras.,

com brilhos que desciam

às negras sementes da vida.

Estranhamente o sol demorou-se

nos seus ombros. Um último

brilho, ou suspiro, desprendeu-se.

O ar tremia – apesar disso eu era feliz,

tinha dez ou mil anos, já não sei.

 

In: Os Sulcos da Sede (2001)

10
Mar
14

De ramo em ramo

O branco do linho ou dos muros

do sul,

o carmim matutino,

 

o claro azul mediterrâneo, o limão

húmido ainda,

o laranja, o verde das oliveiras

 

prateado, o amarelo exausto

da glória, o violeta adormecido

da flor que lhe dá um nome,

 

o ocre do trigo ceifado,

o negro quase

materno da terra lavrada,

 

é nos olhos que são ave

de ramo em ramo concertada.

 

In: Os Lugares do Lume (1998)




"Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria." Eugénio de Andrade
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“Sobre Eugénio sobra-me em emoção e lágrimas o que escasseia em palavras. Não há claridade que te descreva, meu querido Eugénio. És o meu poeta de ontem e de sempre. Mantinha um desejo secreto de te conhecer um dia, passar uma tarde contigo de manta nas pernas a afagar os gatos que tanto amavas. Em silêncio, sim, pois sempre foi em silêncio que me disseste tudo ao longo destes anos todos em que devorei as tuas palavras. Tu não poupaste o coração e por isso viverás sempre. Não há morte que resista a isso.” Raquel Agra (13/06/2005)

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